Simples o assunto não é. Quando se fala de amor, qualquer que seja ele, invariavelmente adentramos o fabuloso palácio de Eros e Psique, com todos os seus mistérios, segredos e faces ocultas de desejos, afetos e expectativas e de dimensões ilimitadas, que desafiam as fronteiras do nosso próprio eu. Então, temos de estar prontas/prontos para um tema labiríntico, complexo e profundo.

Mas vamos tentar jogar alguma luz sobre o assunto, iluminando com cuidado um dos aposentos desse palácio, o do amor por si, amor próprio ou, como ouvi recentemente, autoamor.

Como vivê-lo, afinal?

Penso que antes de mais nada é necessário compreender o que ele é: que sentimento é este, o que ele não é, de onde nasce…? Depois é possível seguir na direção de entender a sua importância e por que precisamos dele, para, por fim, pensarmos em formas práticas de descobri-lo e/ou desenvolvê-lo dentro de nós.

Sem a identificação inicial, facilmente nos perdemos e nos confundimos, transitando por corredores escuros e tortuosos, nomeando de amor o que de fato nada tem a ver com isso ou buscando experiências de amor de forma muito equivocada.

Sem complicar demais o tema, falar de amor é falar daquele sentimento profundo de conexão, de gostar de algo ou de alguém, de sentir afeição, carinho, desejo, admiração intensos. Como consequência, temos vontade de estar junto, de cuidar e de sermos olhadas/olhados com igual interesse e afeto.

Da mesma forma que todas as nossas experiências humanas, o amor nos vem como uma herança potencial pela própria condição de termos nascido humanos. E, tal como uma semente, à medida que vai sendo nutrido brota e ganha suas formas singulares para cada uma/cada um de nós. Ou seja, amor é um sentimento potencial do ser humano, que na dependência de ser despertado por experiências também de amor – ou similares – vividas ou observadas ao longo da vida, poderá brotar e frutificar, assumindo características, narrativas, intensidades e coloridos específicos.

Até aqui não estamos falando especificamente do amor que dirigimos a nós, mas de amor em geral. Diferença não tem. Apliquemos esses aspectos a nós mesmas/nós mesmos para verificar: “Amor por si é o sentimento profundo de conexão, de gostar de si, de sentir afeição, carinho, afeto, desejo, admiração intensos por si mesma/por si mesmo. Como consequência, temos o desejo de estar conosco, de cuidar de nós mesmas/nós mesmos e nos olhamos com interesse e afeto”.

E prosseguindo… Como todas as experiências humanas, carregamos o amor por nós como um potencial a ser desenvolvido e que ganhará formas particulares para cada uma/cada um de nós a depender das experiências também de amor – ou similares – que tivermos ou que observarmos ao longo da vida.

Pois bem. É claro que aprendemos sobre amor próprio com o amor que recebemos ao longo da vida, aquele amor que percebemos ser dirigido a nós pelos outros, outros significativos para nós – e aqui é inegável a relevância que os primeiros registros, aqueles da infância têm em nossas vidas.
Ser importante para alguém é certamente a maior aspiração humana, por incrível que isso possa parecer dito explicitamente assim. Mas basta verificar. E os primeiros alguéns para quem desejamos ser importantes são, sem dúvida, os pais ou quem cuida de nós quando começamos a nos dar conta de nós mesmos, do mundo e da vida.

Esta é uma questão de sobrevivência até. Se não conseguirmos despertar esse senso de que somos importantes em quem nos rodeia, não conseguiremos atravessar essa fase de total dependência. A criança treina ser importante quase que o tempo todo. Por exemplo, quando chama a atenção, faz graça, cativa e até (ou principalmente) quando faz birra, muitas vezes uma forma distorcida de conquistar afeto e atenção.

Como resultado disso, é claro que colhemos experiências muito diversas ao longo da vida: experiências positivas, experiências negativas e outras mais básicas ou neutras. Uma bagagem significativa e diversificada vai se formando, na qual certamente carregaremos sucessos, mas também muitas faltas e lacunas, buracos e vazios. Não ter tido a atenção de que necessitávamos ou que gostaríamos dos nossos pais – e toda criança quer sempre muita atenção, uma atenção quase irrealizável –, aquele amor não correspondido da adolescência – quem não!? –, outras frustrações amorosas e mesmo a não realização de projetos com os quais tanto sonhávamos podem nos deixar registros negativos a respeito de nós mesmas/nós mesmos. É fácil interpretar essas situações, a depender da maturidade emocional, como: não sou suficientemente boa/bom, não tenho valor, não sou digna/digno de admiração e, portanto, de amor… E assim vamos completando e carimbando nossa bagagem.

Então, aqui chegamos a um ponto em que certamente todos tivemos que dar uma virada nessa questão do amor por si, mas que nem sempre fomos ensinados ou intuímos como fazer. Sem ter realizado essa mudança, é provável que vivamos uma série de turbulências em nossas vidas, em especial nos nossos vínculos e experiências de afeto e conexão, mas também em muitos outros momentos e situações, que podem ter sido contaminados por incertezas e inseguranças.

E o ponto é que, imaturamente, seguimos ao longo da vida buscando amor, afirmação, estima fora de nós – é bem provável que exclusivamente fora –, o que se torna um grande equívoco, que precisamos corrigir com urgência se quisermos ter uma experiência positiva da vida.
Afinal, quem acorda e pensa: “Hoje vou conquistar o amor de mim mesma/de mim mesmo. Que máximo!”? Mas, ao contrário, incessantemente queremos conquistar o amor (romântico) de um(a) parceiro(a), namorado(a), esposa ou marido. Ou o amor dos filhos, dos pais, da família, dos amigos. Ou ainda cair nas graças do melhor orientador da pós, do emprego dos sonhos, de todos os possíveis clientes potenciais, do mundo inteiro… menos de nós! Sim ou não? Ou alguém já acordou com a intenção de enfim conseguir se amar por este e pelos vários dias futuros da sua vida?

Infelizmente acho que não. Mas seria incrível. Olhem este cenário: não daríamos trabalho ou faríamos cobranças a ninguém, tudo seria leve e desprovido de carências, o amor – este sentimento que é tão prazeroso a ponto de, em geral, estar no centro de nossas vidas, em suas várias expressões e dirigido a diferentes objetos –, o amor brotaria naturalmente de dentro.

Veja que não estamos falando de isolamento, autossuficiência ou egoísmo. Leia de novo e verá que não tem nada a ver com isso. Amor por si não é excludente. Ao contrário. Observando com atenção descobrimos que é justamente o contrário: dessa fonte desobstruída dentro de nós mesmos podemos gerar e transbordar amor no mundo.

Desenvolvendo o amor por si simplesmente paramos de terceirizar o amor, paramos de pedir dos outros o que não conseguimos fazer por nós. Amar a si é a grande transmutação que precisamos fazer na vida adulta, de um amor egoísta, cheio de interesses pessoais, autocentrados e imaturos, para uma condição de liberdade, sem amarras.

A grande qualidade do amor verdadeiro, dirigido ao que quer que seja – a si, aos outros, a uma profissão, projeto, missão de vida etc. – é essa sua dimensão que desafia as fronteiras do próprio eu. Amor é sempre ampliação da consciência e da conexão que temos com a vida e é, portanto, liberdade.

Então, enfim, como desenvolvê-lo afinal?

Como o assunto é extenso, vamos com gentileza e amorosidade falando dele. Seguimos no mês que vem. Se já tiver brotado aquela pontinha de inspiração quanto ao amar a si, certamente mudanças virão. Ame-as e as cultive com carinho

Iana Ferreira
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