Artigo para o Site da Granja, novembro de 2021

 

Lembro-me de minha mãe contando que quando meu pai a deixou em meio a uma gravidez que não havia sido planejada, ela então com 42 anos, numa época em que mulheres pariam apenas até os trinta e olhe lá, primeira e única filha a caminho, o sofrimento foi intenso durante um mês exato e que depois ela guardou a dor para tocar a vida.

Demorei a entender o quanto muitas vezes este é o único caminho possível e é aquilo que precisa ser feito de fato. Só com o tempo é que fui não apenas compreendendo mas também admirando a atitude dessa mulher, que garantiu que pudéssemos seguir.

No entanto, é claro também que esta é apenas uma estratégia de sobrevivência, adequada para momentos críticos. Em meio a um acidente ninguém trata a tristeza, o medo, o susto, a insegurança gerada pelo imprevisível. Naquele instante, trata-se apenas de garantir que a vida siga.

É quando passa a emergência que, sem dúvida, se faz necessário cuidar do que não pôde ser cuidado naqueles instantes iniciais. Não fazer isso nos torna meros sobreviventes, pessoas que conseguiram se manter diante de uma situação limite, mas que não podem usufruir de uma vida mais integral, leve e satisfatória.

O problema maior é que nossa atenção vai para o cuidado com os aspectos físicos e materiais. Isso é fácil. Tudo está visível, mensurável e palpável. É preciso suturar um corte, consertar o telhado depois da tempestade, varrer a lama, acertar as finanças ou refazer qualquer coisa levada por algum desastre ou imprevisto.

Cuidar de sentimentos, por outro lado, principalmente numa época e sociedade em que sentimentos são tão desvalorizados e considerados como tendo pouca importância, já é algo de dimensão muito diferente. E o fato é que quase invariavelmente pensamos que eles deverão se resolver por si, que irão se dissolver ou desaparecer por mágica.

Mas não vão. É só observar. A vida começa a ficar truncada, impedida em algumas áreas, repetitiva em outras, sem graça e, pior, sem sentido. Uma vida que se torna ansiosa, limitada, sem liberdade, árida, ressequida, angustiada, triste, deprimida, sem energia. Esses são os sinais dados por sentimentos que foram guardados e nunca mais tratados. O corpo da vida fica infeccionado, sem vitalidade, febril.

Nas relações, sentimentos não olhados também produzem seus efeitos. E é parecido: algumas áreas ficam impedidas, obstruídas, truncadas; perde-se a liberdade, a graça, o prazer e o sentido. É aquele momento em que se pensa: o que estou fazendo junto dessa pessoa? Por que deixamos de nos olhar, conversar, transar ou amar? Que chatice isso se tornou…

O fato é que, muitas vezes, realmente só é possível e preciso guardar a bagunça numa gaveta e deixar aquilo ali do jeito que está mesmo. Isso porque não dá tempo de olhar, porque não sabemos como organizar, decidir ou resolver uma certa desordem ou caos ou porque precisamos providenciar mais espaço, armários ou outras estruturas para acomodar melhor o que se embolou. Às vezes até é preciso ajuda de fora – por que não e que maravilha quando ela aparece.

Porém, gavetas eternamente bagunçadas geram uma perda de tempo e de fluxo impressionante. Elas nos fazem não mais encontrar aquilo de que precisamos muito, gastamos um tempo desproporcional para acessar o que queremos, sentimos raiva, tristeza, irritação por não ter à mão o que desejamos ou o que é necessário em nossas vidas e chegamos mesmo a perder o acesso a muitas coisas que são fundamentais para nós.

Arrumar gavetas é trabalhoso e desagradável às vezes, é verdade… Mexer em sentimentos guardados pode ser muito mais ainda. O bem-estar só aparece depois, quando reencontramos caminhos, sentidos e possibilidades que foram engavetadas junto. A sensação de ordenação, harmonia e inteireza valem o labor. A vida pode seguir de outras maneiras melhores então.

Quem já não experimentou essa sensação um dia – ao menos com os armários, prateleiras, gavetas e estantes? Pois vale buscar o mesmo com o vasto mundo sutil dos sentimentos. Apesar da dureza de remexer em certas memórias e emoções que preferíamos que não existissem, limpá-las e ordená-las com novos sentidos é muito possível. E além de tudo, muitas outras coisas boas também podem ser reencontradas por ali.

 

Iana Ferreira
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