O trabalho de Clarice Lispector como escritora é inquestionavelmente conhecido e reconhecido tanto no Brasil quanto no mundo. Sua atuação como jornalista, no entanto, costuma ganhar menos destaque, ainda que tenha pontos de grande relevância. A respeito disso, basta mencionar entrevistas que fez com expoentes de áreas diversas, como as concedidas por Bibi Ferreira, Alceu Amoroso Lima, Hélio Pelegrino e Tom Jobim.

Já na sua época, Clarice não se sentia à vontade com a ideia de deixar as perguntas para que seus entrevistados as respondessem sozinhos. Considerava que o calor do diálogo era imprescindível para que perguntas pertinentes pudessem surgir.

Foi por isso que se mostrou bastante desapontada quando Pablo Neruda, que se recusou a ser entrevistado por ter acabado de chegar de uma viagem, pediu para ver as perguntas de sua entrevistadora. Depois de ver as questões ele pediu a Clarice que retornasse no dia seguinte para que a entrevista fosse concedida. Qual não foi sua surpresa ao retornar e receber em papel escrito as respostas às perguntas que faria. Ela mesma conta:

“No dia seguinte de manhã, fui vê-lo. Já havia respondido às minhas perguntas, infelizmente: pois, a partir de uma resposta, é sempre ou quase sempre provocada outra pergunta, às vezes aquela a que se queria chegar. As respostas eram sucintas. Tão frustrador receber resposta curta a uma pergunta longa. Contei-lhe sobre a minha timidez em pedir entrevistas, ao que ele respondeu: ‘Que tolice’. Perguntei-lhe de qual de seus livros ele mais gostava e por quê. Respondeu-me: ‘Tu sabes bem que tudo o que fazemos nos agrada porque somos nós — tu e eu — que o fizemos’.”

A entrevista foi concedida em 19 de abril de 1969. Seguem-se as perguntas de Clarice e as respostas redigidas por Neruda:

 

C: Você se considera mais um poeta chileno ou da América Latina?

N: Poeta local do Chile, provinciano da América Latina.

C: Escrever melhora a angústia de viver?
N: Sim, naturalmente. Tra­ba­lhar em teu ofício, se amas teu o­fí­cio, é celestial. Senão é infernal.
C: Quem é Deus?
N: Todos algumas vezes. Nada, sempre.
C: Como é que você descreve um ser humano o mais completo possível?
N: Político, poético. Físico.
C: Como é uma mulher bonita para você?
N: Feita de muitas mulheres.
C: Escreva aqui o seu poema predileto, pelo menos predileto neste exato momento?
N: Estou escrevendo. Você pode esperar por mim dez anos?
C: Em que lugar gostaria de viver, se não vivesse no Chile?
N: Acredite-me tolo ou patriótico, mas eu há algum tempo es­crevi em um poema: Se tivesse que nascer mil vezes. Ali quero nascer. Se tivesse que morrer mil vezes. Ali quero morrer…
C: Qual foi a maior alegria que teve pelo fato de escrever?
N: Ler minha poesia e ser ouvido em lugares desolados: no deserto aos mineiros do norte do Chile, no Estreito de Ma­ga­lhães aos tosquiadores de ovelha, num galpão com cheiro de lã suja, suor e solidão.
C: Em você o que precede a criação, é a angústia ou um estado de graça?
N: Não conheço bem esses sentimentos. Mas não me creia in­sensível.
C: Diga alguma coisa que me surpreenda.
N: 748. (E eu realmente surpreendi-me, não esperava uma harmonia de números)
C: Você está a par da poesia brasileira? Quem é que você prefere na nossa poesia?
N: Admiro Drummond, Vinícius, Jorge de Lima. Não conheço os ma­is jovens e só chego a Paulo Men­des Campos e Geir Campos. O poema que mais me agrada é o “Defunto”, de Pedra Nava. Sem­pre o leio em voz alta aos meus amigos, em todos os lugares.
C: Que acha da literatura engajada?
N: Toda literatura é engajada.
C: Qual de seus livros você mais gosta?
N: O próximo.
C: A que você atribui o fato de que os seus leitores acham você o “vulcão da América Latina”?
N: Não sabia disso, talvez eles não conheçam os vulcões.
C: Qual é o seu poema mais recente?
N: “Fim do Mundo”. Trata do século 20.
C: Como se processa em você a criação?
N: Com papel e tinta. Pelo menos essa é a minha receita.
C: A crítica constrói?
N: Para os outros, não para o criador.
C: Você já fez algum poema de encomenda? Se não o fez faça agora, mesmo que seja bem curto.
N: Muitos. São os melhores. Este é um poema.
C: O nome Neruda foi casual ou inspirado em Jan Neruda, poeta da liberdade tcheca?
N: Ninguém conseguiu até agora averiguá-lo.
C: Qual é a coisa mais importante no mundo?
N: Tratar para que o mundo seja digno para todas as vidas humanas, não só para algumas.
C: O que é que você mais deseja para você mesmo como indivíduo?
N: Depende da hora do dia.
C: O que é amor? Qualquer tipo de amor.
N: A melhor definição seria: o amor é o amor.
C: Você já sofreu muito por amor?
N: Estou disposto a sofrer mais.
C: Quanto tempo gostaria você de ficar no Brasil?
N: Um ano, mas depende de meus trabalhos.

 

Clarice encerra suas observações sobre a entrevista escrevendo:
“E assim terminou a entrevista com Pablo Neruda. An­tes falasse ele mais. Eu poderia prolongá-la quase que indefinidamente. Mas era a primeira entrevista que ele dava no dia seguinte à sua chegada, e sei quanto uma entrevista pode ser cansativa. Espontaneamente, deu-me um livro, Cem Sonetos de Amor. E depois de meu no­me, na dedicatória, escreveu: ‘De seu amigo Pa­blo’. Eu também sinto que ele poderia se tornar meu amigo, se as circunstâncias facilitassem. Na contracapa do livro diz: ‘Um todo manifestado com uma espécie de sensualidade casta e pagã: o amor co­mo uma vocação do homem e a poesia como sua tarefa’. Eis um retrato de corpo inteiro de Pablo Neruda nestas últimas frases.”

 

Um encontro notável!

 

Entrevista publicada no livro De corpo inteiro, de 1999.

 

Fontes:
Lispector, Clarice. De corpo inteiro, Editora Rocco, em 1999
Nóbrega, L. P., & dos Santos, G. F. C. Clarice Lispector no papel de entrevistadora: a subjetividade em cena, Revista Nexi, 2012.
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