“Porque pílulas da felicidade não existem, vivamos a vida” – com este texto inauguro minha coluna no Jornal d’Aqui. Uma honra poder escrever numa mídia que tanto admiro.

 

Em meu trabalho como psicóloga, com frequência eu me pergunto por que se deveria tentar abolir instantaneamente estados mentais como angústia, tristeza, nervoso, irritação ou preocupação. Embora incômodos, eles não são, em si mesmos, sinônimos de desequilíbrio, fracasso ou de que a vida vai mal. Que devem ser superados, em geral, é claro que devem. Todos queremos ser felizes, e este é um desejo legítimo. Mas normalmente há que se ter tempo para que certas mudanças e processos aconteçam. Além disso, uma vida absolutamente linear, sem seus pontos altos e também sem seus baixios, parece algo de irreal, um enredo fictício de pouca imaginação – portanto, sem ação, sem movimento.

 

Importante entender que atravessar um momento de tristeza, ainda que profunda, não pode ser confundido com estar em depressão, assim como enfrentar períodos de ansiedade e de preocupação não significa que se esteja sofrendo de estresse. Tais fatos, na verdade, são sinais importantes emitidos pelo sistema psíquico, que provavelmente está lidando com algo desconhecido ou não previsto, algo para o que não se tem, ainda, ferramentas ou estratégias de resolução. Então, felizmente o que está ocorrendo na maioria desses casos é que o sistema está trabalhando, fazendo seus enfrentamentos, lidando com a situação e buscando saídas. Este é um ótimo sinal. Entristecer-se ou se preocupar é sim, nesse sentido, um ótimo sinal, sinal de que a vida está transcorrendo na diversidade que lhe é natural.

 

Dessa maneira, suprimir tais estados emocionais incômodos, fugir deles, impedi-los, bloqueá-los ou negá-los, com pílulas anestésicas das mais variadas, sejam as concretas, quando mal receitadas ou inadequadamente indicadas, sejam as nossas diversas anestesias cotidianas, “felicidades” instantâneas ansiosamente buscadas, não é a melhor escolha a ser feita.

 

Infelizmente, desde a infância, em especial nos dias de hoje, nos habituamos a evitar frustrações a todo custo. Crianças não são frustradas, pois os próprios pais não conseguem tolerar os choros nem as demonstrações de desapontamento de seus filhos, não suportamos nossas próprias frustrações e mal conseguimos dar um breve apoio aos nossos amigos ou a um conhecido quando percebemos os primeiros sinais de tristeza. Mas não é irrealista pensar em um dia inteiro, que dirá numa vida inteira repleta de situações tão complexas, em que nada dê errado ou nos frustre? Desde a água que precisa sair das nossas torneiras e o alimento que deve chegar ao supermercado a outras complicadas demandas, como tomadas de decisão que envolvem o conhecimento sobre assuntos cada vez mais complexos etc., é mesmo razoável ter como meta sustentar a vida em um estado de inabalável êxito, caminhando exclusivamente de uma situação bem-sucedida a outra?

 

Refletindo um pouco que seja sobre o assunto, certamente poderemos concordar que, ao invés de desejar situações constantemente perfeitas fora, é mais lógico buscar uma condição mais favorável dentro. Pensemos, por exemplo, na educação das crianças. É possível e razoável desejar um mundo absolutamente protegido e perfeito para os nossos filhos “viverem”? Ou devemos querer filhos saudáveis, fortes e dispostos a enfrentar um mundo complexo como o nosso e nele fazer seus aprendizados?

 

Há um ditado budista que diz que, se queremos proteger os nossos pés, jamais pensaremos em cobrir toda a Terra com couro, mas, ao invés disso, cobriremos os nossos pés com o couro de um sapato.

 

Nosso sistema psíquico, cognitivo e emocional, se quisermos olhar dessa forma, são nossos pés para caminharmos pelo mundo. Eles devem estar suficientemente protegidos e também precisam estar arejados e flexíveis o suficiente para que possamos atravessar tanto os trechos mais macios quanto outros mais pedregosos. De toda forma, é disso que precisamos para não nos paralisarmos, mas nos mantermos caminhando e nos desenvolvendo. E a vida é um contínuo des-envolver-se, envolver-se verdadeiramente com as situações diversas que encontramos, não tentando nos desviar desesperadamente de algumas que nos parecem indesejáveis e nos agarrar a outras que consideramos, num breve olhar inicial instantâneo, como as ideais e imprescindíveis.

 

Essa coluna tem como proposta ser um espaço de apresentação de temas relativos a esse caminhar pela vida, em nossa apressada sociedade contemporânea, um espaço de reflexão, de pausa (também necessária em meio ao movimento natural de se estar vivo), de intervalo – do latim intervalium, “entre vales/trincheiras”, espaço entre um ponto e outro, entre um momento e outro. Que de um passo a outro possamos ir nos constituindo como seres internamente mais capazes e fortalecidos por enfrentar processos e a diversidade da vida. Vale refletir que até para sermos felizes precisamos de estrutura interna, caso contrário, rapidamente mesmo as situações mais favoráveis se deterioram, corroídas por ansiedade, insegurança e outras fragilidades da vida instantânea mal constituída.

 

Espero que possamos nos encontrar por aqui com frequência e ir constituindo gradativamente também esse espaço de reflexão.

 

Veja a coluna completa no Jornal clicando AQUI.

Iana Ferreira
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