Que o Brasil há anos ocupa as primeiras posições no ranking de países que mais realizam cirurgias plásticas, todo mundo sabe ou adivinha. Que o mundo se preocupa a cada hora mais com aparência e estética, todos nós sentimos na pele – desculpem o trocadilho.

 

Ainda assim, a notícia, há algumas semanas, de que uma mulher viajou de bem longe, chegou a uma outra cidade em busca de um médico que não conhecia, subiu até o seu apartamento e ali aceitou submeter o seu corpo a um procedimento estético que lhe custou a vida assombrou a todos nós, de um modo geral. E ainda levou parte da impressa a fazer chover uma sequência de outros casos semelhantes logo a seguir para produzir mais espanto.

 

Assombrados, mas também imersos nessa condição tão atual, uma parte nossa provavelmente também “subiu” ao apartamento do médico, cheia de esperanças de uma rápida transformação que tivesse um potente efeito cirúrgico na vida como um todo… Será que não?

 

A cirurgia plástica surgiu como intervenção médica com uma função basicamente reconstrutiva para os casos de acidentes, em especial queimaduras, ferimentos de guerra ou doenças, quando era necessário recuperar tecidos, membros ou até mesmo partes inteiras do corpo. Com o avanço técnico e também com o aumento da expectativa de vida, além de todas as transformações no nosso modo de viver, as intervenções plásticas migraram para o campo estético e se desenvolveram também aí.

 

A grande questão neste contexto é que, durante esse processo, tais cirurgias foram assumindo igualmente, sem que se percebesse, a promessa fantasiosa de ser a solução perfeita e rápida para problemas que, na verdade, estão fora do âmbito do meramente plastikos – palavra grega que significa moldar ou modelar.

 

Pensando numa expressão próxima, “artes plásticas”, e no que ela significa, acredito que possamos entender melhor o problema atual com o corpo. Vejamos. Para que seja considerada arte plástica, uma obra deve ser tangível, ou seja, visível e palpável. Além disso, essa obra é o meio pelo qual o artista reflete sua visão da realidade, o que implica, por sua vez, que nela estão presentes de modo inseparável uma forma e um conteúdo, uma forma e um sentido ou significado.

 

Ora, sabe-se que a questão estética ocupa homens e mulheres em todas as culturas e em todos os tempos. A beleza e a proporcionalidade das formas do corpo estão impressas nos nossos mais primitivos registros como sinais de saúde, de possibilidade de reprodução e, portanto, de sobrevivência da espécie e, desse modo, são instintivamente buscadas e apreciadas.

 

No Antigo Egito já se usavam cosméticos e maquiagem. Unguentos hidratantes e perfumados existem ao menos desde a Idade Média. Joias e adereços são antiguíssimos e usados em todos os grupos étnicos, inclusive nos ditos não civilizados. Todos os eventos especiais da vida humana são cercados de rituais de beleza ou normas a respeito de trajes e adereços, sendo que muitas cerimônias incluem pinturas corporais e outras intervenções exclusivas para estas ocasiões, as quais expressam os significados simbólicos do que está sendo vivido.

 

Então, precisamos nos perguntar: onde estão os sentidos do corpo nos dias de hoje? A questão principal é que ele vem se tornando apenas forma. O corpo perdeu – ou vêm perdendo – os seus sentidos. Ele tem sido reduzido apenas à dimensão material.

 

E projetando unicamente na forma as aspirações de significado para a existência, homens e mulheres se movem cada vez mais em direção ao que é exclusivamente material. De um carro ou celular novos a um corpo sempre novo e mais perfeito, o que vai se vendo é uma busca muitas vezes cega e perigosa, em geral angustiante e infrutífera, já que esvaziada de sentidos mais humanos.

 

Condições específicas, de cada caso, como as que levaram à morte da bancária de Goiânia no mês passado, no Rio de Janeiro, podem envolver questões bastante variadas. Distorções na autoimagem, dismorfia, que é a distorção na imagem que a pessoa tem do próprio corpo, e uma série de outros fatores psíquicos podem estar atuantes em comportamentos que eventualmente geram dramas assim. Mas, num nível mais geral, o que ocorreu reflete, sem dúvida, esta outra condição a que todos estamos mais ou menos conectados: o excesso de materialidade, que se combina perigosamente com uma escassez de sentidos nos dias atuais.

 

Que desejemos corpos belos é, em dada medida, natural, parte da experiência mais humana. Que busquemos corpos sensíveis e equilibrados, onde possamos viver com uma mente ou estado de espírito idem, é uma aspiração a ser recuperada. E embora não tenhamos condições de interromper de imediato processos grupais tão massivos, podemos modificar gradualmente as nossas próprias condições individuais e, com isso, produzir uma coletividade mais consciente.

 

A partir disso, estaremos livres para nos recusar a nos depilar e pintar os cabelos ou para apreciar e seguir um determinado padrão estético vigente, uma moda, um estilo. O que importa é a liberdade e consciência nas decisões, a motivação de nos sentirmos bem, confortáveis e vitalizados no nosso corpo de cada dia, aquele que decai, é verdade, que é, em cada caso, muito particular, normalmente imperfeito, sempre diverso, constantemente em mutação, nunca dado a ser plastificado, o corpo como uma expressão da nossa vida como ela é, com sua autêntica e mais profunda plasticidade.

 

Esta ainda é uma escolha possível.

Artigo para o Jornal d’Aqui, Granja Viana, Cotia, SP

Foto: David Dawson, do ateliê de Lucian Freud

 

Iana Ferreira
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