…também busca a luz do sol!

Artigo para o Jornal d’Aqui, outubro de 2021

 

Ah, essas sentenças que imprimiram o sabor do absoluto e do irrevogável na nossa infância! “Pau que nasce torto morre torto.” Quantas vezes não ouvi essa frase quando era pequena? Bom, já passei dos 50 e na época em que eu era criança essa conclusão condenatória era recorrentemente dirigida àquele tio que fazia negócios desastrosos e perdia muito dinheiro ou ao primo totalmente avesso ao trabalho e que passava dias e noites no frenesi hormonal, num período já bem pós-adolescência.

É… as mulheres talvez não fossem tão atingidas pela infeliz imagem de terem nascido tortas. Pior: de serem um pau que nasce torto – alguém sabe se tem alguma ideia fálica por trás disso? Acho que não tem, mas vai saber. De toda forma, homens, adolescentes rebeldes e crianças bagunceiras eram os principais alvos da frase condenatória.

Na época, eu ficava imaginando como as pessoas aprisionadas na tal sentença teriam sido ao nascer. Porque, para mim, todos os bebês eram fofinhos, cheirosos, meigos e alegres. Claro que havia também os doentinhos, os que choravam muito etc. Mas eu nunca consegui encaixar a ideia de uma criança recém-nascida com a de um pau que nasceu torto.

Tampouco achava que um pau nascido torto era algo tão ruim assim. Um dia conheci uma árvore em algum parque numa cidade qualquer por aí – já não me recordo mais onde foi – que tinha um tronco que corria quase rente ao chão. Quando a vi só conseguia pensar na habilidade que aquela planta tivera para crescer com toda a sua forma torta, envergada. Como ela havia conseguido se desenvolver apesar de alguma situação tão adversa no começo da vida? E era uma verdadeira escultura natural, cuja beleza vinha justamente de sua condição pouco usual.

O que teria acontecido a ela? Era da sua natureza ter entortado? Ou faltara espaço para crescer verticalmente? Ventos? Um acidente? Falta de luz? Alguém tinha moldado a árvore daquela maneira? Bom, como não sou bióloga não sei em que condições isso pode se dar.

O fato é que hoje me deparo constantemente com algo parecido: com queixas de vidas que entortaram de alguma forma. As principais questões que surgem a partir disso são: me sinto estranha(o) e inferior perante outras pessoas, porque algo “entortou” e não cresceu como o esperado em mim; não consigo realizar certas coisas que desejo porque “entortei” dessa maneira; não quero ser “torta(o)” assim, mas duvido que seja possível mudar.

A educação dos rótulos, dura, punitiva e preconceituosa, vem sendo convidada a se retirar de ambientes escolares e familiares faz algum tempo. No entanto, sabemos que, mesmo depois que ideias enfraquecem, atitudes e concepções mais arraigadas demoram ainda uma eternidade para se transformar.

Certos acontecimentos, opiniões formuladas, afetos e olhares nos ajudaram e nos ajudam a moldar nossa identidade ao longo da vida. Precisamos de uma identidade coerente e com certa estabilidade ao acordar todos os dias. Com ela, sabemos razoavelmente de onde estamos vindo e mantemos alguma direção sobre o para onde vamos. No entanto, quando essa noção de identidade se torna excessiva e rígida ela nos causa mal. Isso porque onde a vida pulsa o movimento se mantém. Só um cadáver não pode mais mudar. Vivos, estamos em constante transformação física e mental. E, via de regra, há um impulso constante para uma condição melhor.

A árvore torta do parque, depois de crescer rente ao chão sabe-se lá por quantos anos, seguiu procurando a luz do sol e um dia entortou novamente um pouco para o alto e cresceu um tanto mais na diagonal. Tinha uma linda copa de folhas verdes miúdas, e as crianças caminhavam no seu tronco ou pessoas se sentavam ali para conversar. Aquele pau, que não nascera torto, entortou de acordo com as condições de vida. Mas seu impulso perseverante e vital certamente sempre foi o de crescer na direção de onde vinha a luz do sol. Tornou-se uma belíssima árvore torta, viva e tão singular!

Cada um de nós tem uma história de retas e curvas. Que nossas avós, tios e tias ralhassem conosco com a célebre história do pau que nasce torto é compreensível, já que elas(es) próprias(os) devem ter ouvido isso inúmeras vezes. Hoje, viva nossas histórias, que, por simplesmente serem histórias, carregam tantas transformações. E o que ficou torto nesse caminho tem a beleza da sua particularidade. Admiremos!

 

 

Iana Ferreira
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