E lá o algodão branco molhado com o líquido miraculoso, gelado e implacável me fazia gritar de dor.
“Vou dissolver em água, que não arde tanto.”
E de fato ardia menos, mas ardia. Na alma!
“É pra não ficar com o joelho todo marcado.”
E apesar do enorme sacrifício, do choro e da dor suportada, lá as marcas no joelho apareciam e permaneciam, lindas: brancas, roxas, marrons, em muitos diferentes tons! Um joelho cheio de histórias escritas. Um não. Dois joelhos cheios de histórias. Ali se inscreveram passeios de bicicleta com tombos, subidas em árvore com tombos, jogos de bete com tombos, fugas cinematográficas com tombos e outros eventos de uma infância bem vivida. Com problemas e tombos, claro, mas bem vivida.
O nome Maravilha Curativa povoaria por muito tempo as minhas fantasias. Que maravilha seria essa?
Tinha a cantiga de roda que brincávamos na escola…
Eu ia passando
flor de maravilha
lá no bebedouro
flor de maravilha
meu chapéu caiu
flor de maravilha
meu amor panhou
flor de maravilha
… Então, eu supunha que fosse flor. E a imaginava muito branca, como as compressas de algodão nos machucados, e com brilhos prateados, como bem deve ser qualquer coisa que se chame maravilha.
No entanto, nada disso combinava com a dor produzida. Então, vivia em mim uma questão insolúvel.
E ainda havia o tal Dr. Humphreys, que o nome completo do remedinho era Maravilha Curativa do Dr. Humphreys. E eu o imaginava sinistro, em laboratórios escuros e fétidos, sempre aparecendo de costas e curvado sobre seus experimentos, com um jaleco branco e sujo e rodeado de toda a sorte de outros detalhes assustadores.
Tinha também o hamamelis virginiana. E por aí vai, que lia e relia aquele rotulinho, analisando todos os seus detalhes.
Percebo hoje que esse enredo me ocupou muitos anos de vida!
E não é que com mais de quarenta continuo ralando o joelho? Como pode!? Será uma neurose persistente? Porém, o mais incrível mesmo é que por esses dias – pasmem! – procurei e voltei a encontrar a tal Maravilha.
Alguns anos atrás eu soube que havia saído das prateleiras das farmácias. “Claro”, pensei na época, “quem pode comercializar um negócio tão ruim? Acho que só a minha mãe e algumas outras poucas, quando tomadas de um misterioso estado de crueldade, podem fazer uso desse remédio. As crianças foram enfim libertadas! Amém!”.
Pois não é que depois de estropiar novamente o joelho, ralando o dito cujo num caminho de pedrinhas, onde me prostrei com força e fé, fui procurar a tal Maravilha na farmácia? Recentemente eu tinha ouvido dizer que ela havia aparecido pelas bandas da Onofre (rede de farmácias de SP). E, apesar de ser loja careira, lá me coloquei circulando pelas prateleiras em busca do frasquinho branco com letras e desenho em preto. Não tinha coragem de perguntar pra nenhum vendedor, com medo de que me confirmasse o seu retorno. Mas tudo foi muito rápido. Antes que eu desistisse, avistei o frasco entre metiolates, antissépticos, gazes e coisas que tais. Peguei-o num misto de emoções, mas, confesso, que entre elas havia uma brejeira alegria. Paulo, meu analista, exultaria em saber.
Já em casa, o algodão, o suspense, o medo do ardor, o grito silencioso, o clamado, a súplica… Mas também o zelo. A dor, o impulso de cuidar, o medo, o maternal, o carinho, o pavor, o cuidado, a dor, o cuidado, o amor. Foi! O algodão com Maravilha pousou novamente sobre o joelho ralado.
Não ardeu. Simplesmente não ardeu! Conto isso absurdada: esperei, quase sem respirar, que a dor brotasse feroz por debaixo do algodão molhado. Mas ela simplesmente não veio! É possível acreditar? Pois foi assim. No máximo uma pequena comichão (sim, comichão é feminino; incrível) quando o líquido começou a limpar os tecidos rompidos, as células semidestruídas, e a envolver outras que rapidamente buscavam vencer sua batalhar e criar uma cicatriz.
Há uma semana coloco a Maravilha no joelho, com a perna estatelada na mesinha de centro, e tomo arnica. Minha mãe ia simplesmente amar ver isso. Pena que não houve tempo. Nesta semana também se fizeram cinco anos da nossa despedida. Não faz mal. Contei pra ela. Exultamos. Demos risada. Ela pediu para ver o machucado e fez cara de forte, como sempre. Mas sei que ficou espantada. Levantei a hipótese de que houvessem mudado a fórmula. Ela desacreditou taxativamente, claro. Mas aconselhou com carinho a dissolver o remédio em água caso ardesse. “Não precisa, mãe. Como vê, parece que sou bem mais corajosa hoje. E além disso, já está cicatrizando”.
Muitas coisas estão. Eu vi. Ela viu. E nos felicitamos. Concordamos. Uma maravilha isso!
Foto: Iana Ferreira
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Lindo texto!
Grata, Rodrigo! Obrigada por comentar e que bom que gostou.
Adorei o texto! Uma delícia de ler!
Grata, Alyne! Obrigada por comentar. Abs!
Que graça de história. É possivel que tenham mudado a formula, creio que a de Mertiolate – também presente em minha infância e na de meus filhos mudou.
Verdade, Cybelle. É possível! Já que o Mertiolate suavizou a infância das crianças de hoje, quem sabe a Maravilha também não fez o mesmo!? Nosso privilégio é que as nossas memórias sempre serão mais fortes. rsrs
Grata pelo seu comentário.
Maravilha é o remédio da minha infância também, sempre usado pelo meu pai. Casei e um dos presentes que ele me deu foi uma Maravilha pra o estoque de primeiros-socorros. Perdi meu pai no começo desse ano e a Maravilha que ele me deu segue na prateleira, cuidando. ❤️
Que comentário lindo e tocante, Alana! Pais e mães deixando-nos suas bagagens. Grata por compartilhar!
Sempre usei a Maravilha Curativa de Dr, Humpheys, mas a procurando em Maringá/PR ninguém a conhece. Incrível!!! Uma farmacêutica se deu ao trabalho de pesquisar e ao ler a palavra hamamelis descobriu a pólvora e me disse: Hummm,
serve para contusões. Pode?
Muito sagaz ela, hein, Luiz Carlos? Pena que fomos perdendo a conexão com essas plantinhas fantásticas e curativas. Mas vamos nós nos mantendo na busca por elas.
Desculpe-me a demora em responder. O site esteve em reformulações e eu não atentei aos comentários nos posts. Obrigada por escrever. Um abraço!
Tenho um filho de dois anos e ele caiu por esses dias, não tinha a famosa Maravilha, sempre temos na geladeira. Através do tempo, sempre presente. Lindo texto, Iana. Parabéns!!!
Obrigada, Fátima! E está sendo maravilhoso descobrir outras pessoas fiéis a esse remedinho através dos tempos.
Desculpe-me ter demorado a responder. O site esteve em reformulações e eu não atentei aos comentários nos posts. Obrigada pelo seu comentário. Grande abraço!
Texto lindíssimo mo…história lindíssima
Amei
A tarde buscarei meu frasco na farmácia…
Olá Iana! Você escreveu seu maravilhoso texto já faz um tempinho e somente agora o encontrei, porém não poderia deixar de elogiá-la por suas palavras. Uma linda história para contarmos aos nossos filhos e netos. Achei muito legal quando cita o sinistro Dr. Humphreys. Dizem que ele é meu tataratataratataravô! KKK! Grande Abraço!
Oi, Paulo! Que incrível surpresa receber uma mensagem do tataratataratataraneto do Dr Humphreys! Que demais. Espero não ter ofendido com o “sinistro”. rs Imaginações de criança.
Que pena que minha resposta inicial não foi publicada (deve ter havido alguma falha, porque escrevi logo que vi seu comentário). Por sorte ia contar agora para as minhas filhas do seu contato e percebi que tinha ficado sem resposta.
Mas, enfim, este remedinho rende mesmo histórias. Pra mim é esta de que depois de tanto tempo pude falar com o tatarata…neto do criador da Maravilha. Fantástico.
Obrigada por escrever. Adorei. Abraços!
lindo, lindo seu texto,Parece um roteiro de cinema e me trouxe de volta minha infância e a de meus filhos. Parabéns
Adorei seu texto! Estava na drogaria São Paulo hoje e achei esse remédio no meio dos produtos homeopáticos… Lembrei da minha avó e resolvi trazer kkkkk estava procurando as utilidades dele e achei seu texto! Muito legal! Parabéns! Parece que é um remedinho milagroso, tipo óleo de melaleuca, inclusive podem ser usados juntos para tratar acne! 😘😘
Iabá, fiquei emocionada com seu relato! Gostoso de ler!
Usei muita Maravilha Curativa nos joelhos dos meus filhos e, em muitos ralados meus!
Uma verdadeira benção!
Amei seu texto, Iana. Lindo!
Eu também fui “vítima” da Maravilha, usei em meus filhos e agora nos netos.
E a história se repete.
Mas que funciona … funciona !