O tempo mais implacável, a meu ver, não é aquele que cria linhas indesejadas no rosto, rouba-nos a firmeza da pele, revela a lei da gravidade atuando desde o lóbulo da orelha até barriga, peitos, coxas e glúteos, tira a cor dos cabelos. O tempo mais implacável, observem bem, é aquele que nos faz persegui-lo, sempre com uma sensação de que nossas incumbências são maiores do que nós e de que não somos bons o suficiente. O tempo mais implacável é aquele que não nos deixa parar, cheios de culpa e frustração, muitas vezes sem nem saber por que e para onde corremos.

 

Este tempo implacável e tirano faz a lista das possíveis coisas agradáveis do final de semana se tornar uma tormenta (“rápido, rápido, senão não vai dar pra fazer tudo”; ué, mas virou obrigação o que era pra ser diversão?). Ele apressa o almoço de domingo sem motivo (“garçom, pode trazer a conta rápido?”; ué, mas há algum compromisso obrigatório depois?) e destrói nossas almejadas férias injetando nelas uma sensação de que não se está sendo produtivo e de que isso é ruim (ué, mas férias não é justamente isso, interrupção do fazer costumeiro?). Ele enfraquece relações, conversas, interações, simplesmente porque não se dá muito bem com essas coisas e foge delas nos arrastando junto, sem apresentar um porquê razoável. E nós não questionamos.

 

Este senhor, que fica perscrutando a vida não vivida como um fantasma sobre os nossos ombros, é sim implacável.

 

Pois hoje decidi enfrentá-lo: implacavelmente, parei. Está frio e chuvoso. Então, parei. Tivemos um feriado prolongado e hoje é o último dia. Então, parei.

 

Na verdade, dei-me um tempo, um outro tempo, o tempo que eu desejo.

 

“Mas tenho o texto do jornal para escrever.” Ok, mas por ora, parei.

 

O senhor do tempo se remexe nos meus ombros, pesa, está incomodado. Há a academia, os e-mails, o site. Ok, mas não por ora.

 

“Quantos livros você poderia estar lendo… E os filmes que ainda precisa assistir. Aquela arrumação nas gavetas, ao menos uma, seria importante.”

 

Xiuuu. Por ora não.

 

Tomo chá nessa tarde de primavera atipicamente fria. Hibisco. Hummm, que perfume e que cor extraordinários. Enquanto isso, folheio o dicionário para checar o significado de “ora” – isso, oras, ora sem H, que pouca gente se lembra de usar ou sequer sabe que existe. Cheiro de papel, papel de dicionário… um deleite também. O tom das páginas amareladas me encanta igualmente enquanto corro o dedo pelos os. Ah ha! Achado. Ora: advérbio de tempo que significa “nesta ocasião, agora”. Pronto. Era o que precisava. Um brinde ao ora sem H, ao agora, ao presente.

 

O senhor do tempo se afasta um pouco dos meus ombros. Sua presença fica mais leve. Ele me observa um pouco mais distante.

 

As maritacas estão fazendo um baderna lá fora agora, num pequeno momento de estio. Talvez nem as tivesse observado, se o senhor tic tac estivesse soando na minha mente. Estou feliz com o acordo que faço com o tempo, a la Caetano: “Tempo, tempo, tempo, faço um acordo contigo, tempo, tempo, tempo, tempooo…”.

 

Ele parece aceitar. Não o rejeito. “Você é importante”, procuro lhe assegurar. Claro, claro que é. A cronologia me organiza, organiza a todos nós. Os dias, as horas, as semanas, os encontros marcados, as férias planejadas. Precisamos dele, deste tempo linear que também cria memórias, eventualmente suaviza danos, sofrimentos, leva o que é necessário para os mares do esquecimento, acompanha lutos, processos, elaborações, reparações, observa crescimentos, amadurecimentos.

 

Fazemos as pazes. A vida tem mais cores, cheiros e sons neste agora que consigo enfim experienciar. Tem respiração. Inspiração e expiração. Não é linear, mas espiralada, delgada, curvilínea, circular, dançarina. Não tem um começo que precisa chegar a um fim. Faz curvas, gira, talvez enlouqueça. Será? Uma desordem boa. Está livre para ir aonde quiser. E eu me deixo segui-la sem pressa.

 

O único tic tac agora, sem peso nos ombros, é o das teclas do computador. Pois é. Escrevo o texto para o jornal. Enquanto isso, tomo chá, sinto cheiros e escuto as maritacas. E percebo o som das teclas, sempre tão desapercebidas, meras coadjuvantes, quando, na verdade, são as atrizes principais – que texto sairia sem elas neste mundo tecnológico de hoje? Observo-as com uma atenção que nunca lhes dei. Não são ritmadas. Vêm e vão, silenciam, se escondem, reaparecem… Eu as sigo. E o texto acontece. Simples e natural. Não linear. Sem objetivo e sem compromisso. Simplesmente o texto que é, no momento em que acontece.

 

Os tempos implacáveis do senhor Cronos se harmonizam com os de Kairós, o tempo da alma. Deveríamos ser educados na infância, na escola, por todo lugar a conhecer estes últimos profundamente também. Inúmeros vazios que costumam nos assustar se tornariam aos poucos menores – o vazio da pressa sem sentido sendo preenchido por cheiros, cores, sabores, significados, ritmo, vida. O peso nos ombros ou estaria mais leve ou nem sequer existiria.

 

Passo a mão no rosto. Sinto uma linha ali, um traço que desce rodeando a maça do rosto e que vem se aprofundando com o tempo. “Bem-vinda, linha”, penso. “Conte sua história”.

 

As linhas do texto também acontecem, se desenvolvem, se aprofundam, contam história. E eu as acompanho. Simplesmente estou aqui, estou agora. Não estou buscando as linhas publicadas no futuro, não estou ansiando pelo texto pronto. Estou aqui enquanto as linhas nascem. Há coisa mais bela que tempo de brotação?

Artigo para o Jornal d’Aqui, Granja Viana, Cotia, SP
Iana Ferreira
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