Onde um líder se estabelece, o poder deve ter pouca importância, a responsabilidade, toda importância.

Se pensássemos assim, poucos de nós almejaríamos uma posição de liderança. Afinal a responsabilidade que pesa aí é bastante grande. No entanto, quantas vezes não lutamos por este lugar, por um lugar de poder, que seja na discussão do almoço de domingo?

Qual é, efetivamente, o ganho com isso? Reconhecimento? Prestígio? Conforto? Dinheiro?

Em uma de suas primeiras visitas ao Ocidente, o Dalai Lama disse que ficou muito surpreso ao ver que aquilo que o homem ocidental mais almeja (será que nós mulheres estamos livres disso?), acima até mesmo do dinheiro, é o poder. Tomado por essa sede, qualquer vislumbre da responsabilidade ou verdadeira incumbência de uma posição de poder desaparece por completo.

O nosso país inteiro escolherá em poucos dias, ao menos por quatro anos, um líder, uma pessoa que assumirá essa posição máxima de poder. Qual é a dimensão que isso tem? Ainda nos damos conta do que ela significa?

Da forma como estamos organizados, vivemos num complexo coletivo hierárquico. Esta hierarquia complexa tem um eixo, várias camadas, uma ordenação. Todos os níveis precisam estar bem funcionantes para que o todo se mantenha em ordem e harmonia. As posições do topo têm funções e um peso particular nisso. Por exemplo, até mesmo palavras ou gestos da pessoa que assume o cargo mais importante e de maior visibilidade de toda a nação organiza ou desorganiza o todo. Cada palavra ou cada gesto importa, e importa muito!

Querem ver? Há décadas os brasileiros roubam. Nós roubamos em pequenos gestos cotidianos. Quase todo brasileiro comum já sonegou imposto, deixou uma conta de supermercado equivocada passar quando era a seu favor, já driblou algum pagamento quando foi possível. Ou não? E por quê? Somos autorizados desde lá de cima a fazer assim. Sabemos desde sempre da sujeira que corre pelos canos da política – isso não é invenção recente. E entramos nessa engrenagem também, sentindo-nos justificados. É quase incontrolável. Está naturalizado e é difícil resistir… em geral.

Outro exemplo mais recente, no entanto, chama muito mais atenção no momento. Nas últimas semanas, uma onda de violência assolou o país. O povo brasileiro tão pacífico, essa nossa identidade vendida aos quatro cantos do mundo e na qual acreditávamos piamente, desmantelou-se em uma onda de tensão e violência. Ela pode ser verbal, uma simples zombaria ou vômito ofensivo na publicação de um amigo em rede social, ou mesmo um ataque com faca, como os que vitimaram de Bolsonaro a mestre Moa do Katendê.

A frustração por um país que saiu de um momento de ascensão, as notícias de ondas incontroláveis de roubos, a miséria e a desassistência encontrados em quase todos os serviços públicos já vinham se tornando, há alguns anos, solo fértil para a raiva, o ódio e antagonismos diversos.

Desde aí se foi montando um cenário em que os afetos poderiam sobrepujar facilmente o raciocínio, o bom-senso e tomadas de decisões mais conscientes.

Mas ainda por cima do topo surgiram exemplos de violência. Do topo surgiram falas e gestos arrebatados. Surgiram também ideias truculentas, extremadas. Surgiu, dessa maneira, um convite e, mais que tudo, uma autorização à violência. Surgiu na verdade um perigoso jogo de forças com esses afetos.

E a violência nos desmantelou. A violência pode destruir vidas, mas também destrói nossa coesão e nossos grupos, a nossa identidade até mesmo como nação. E sem esse coletivo ficamos vulneráveis.

Hoje talvez não notemos, mas caminhamos desmantelados. Estamos divididos, cindidos e buscamos nos identificar com um de dois lados que se apresentam às nossas percepções como radicalmente opostos, como um lugar de retomada da nossa identidade, um lugar de segurança… Mas no fundo estamos fragilizados. Nós nos desconectamos. Muitas vezes nos desconectamos daquelas pessoas que eram mais próximas de nós. Já não sabemos com quem passaremos as festas de final de ano nem se brindaremos ao novo ano que chega em pouco mais de dois meses. Nós nos desconectamos de nós mesmos. Nossa rede se esburacou. Não podemos cair, porque não há rede embaixo de nós.

Por vários motivos, este é um momento atípico, em que é preciso fazer uma escolha atípica, em meio a elementos que desconhecemos, talvez porque nunca tenhamos sido apresentados a eles em pleitos anteriores aqui no Brasil. Rejeições extremas e posturas extremadas, quem imaginaria isso quando batia boca sobre política em 2014?

Há também, é preciso observar, um comportamento de massa colocado em movimento. É preciso cuidar dele. Quando nos movimentamos em grupos – ou, de forma radical, podemos dizer “em manadas” –, obedecemos comandos coletivos bem apartados de nós. Em algum momento, podemos já nem saber claramente o que seguimos. Temos uma leve indicação mas não sabemos de verdade. Isso talvez seja a maior marca destas eleições. E também o mais desconhecido e perigoso elemento. Precisamos atentar para ele, porque se aparentemente há uma ordenação lógica nisso, há um esvaziamento do indivíduo pensante, que produzirá caos no futuro.

No entanto, se há uma coisa que ainda nos liga, que faz uma costura entre nós ou entre quase todos nós é que a nossa escolha nos próximos dias é por um país que queremos melhor. Isso é indiscutível. E se isso nos une, bem poderíamos por alguns instantes nesses próximos dias nos reconectarmos com as pessoas com quem construímos boa parte das nossas vidas até aqui: nossos amigos, pessoas da família, até mesmo os nossos atuais desafetos – que pode ter sido nosso grande amigo ontem, pode ser nosso pai, nossa mãe, irmão, primo… Conectar-nos com “o lado de lá”, com os que estão “do lado de lá”, essa fronteira traçada a força de palavras, pensamentos incessante e surdamente repetidos. Precisamos atravessar essa fronteira e nos reencontrar como indivíduos. Certamente nosso voto será um tanto mais consciente e humanizado depois disso.

Então, boa ida às urnas para todas e todos nós. Que o caos seja apenas o de uma forte alegria, que aplaque ódios e desentendimentos e nos faça voltar a nos reconhecermos como vizinhos, amigos, família, comunidade, povo, nação. Nada nem ninguém deve sobrepujar isso. Cuidemos para que não aconteça. A responsabilidade também é nossa.

Artigo para o Jornal d’Aqui, Granja Viana, Cotia, SP

Imagem: Pinterest

Iana Ferreira
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