Artigo para o Site da Granja, julho 2020

 

A pandemia nos isolou em casa e nos distanciou das pessoas com quem convivíamos. Uma rotina inteira foi suspensa, bem como muitos dos nossos sonhos e projetos, além de muitos prazeres que tínhamos. Essa situação desafiadora e sua consequência direta, a quarentena forçada, acabaram nos colocando em contato com muitas coisas que antes ocupavam posições mais secundárias no nosso dia-a-dia ou que até mesmo tinham-se tornado invisíveis. O surpreendente é que essas coisas, na verdade, têm a ver com aquilo que nos é mais íntimo. Da nossa própria casa aos nossos sentimentos mais profundos, passando muitas vezes pela própria família, ao fechar as portas para o mundo lá fora, estamos sendo obrigados a olhar para este universo próximo sem descanso, dia e noite, noite e dia.

 

Pois é, agora, toda dia acordamos sem poder nos distrair de coisas que antes o café da manhã às pressas, muitas vezes já com a chave do carro na mão, facilmente empurrava para baixo da agenda e de uma lista infindável de tarefas, ligações e compromissos. E de noite, mostram os estudos, a insônia tem batido marcas recordes. Toca a virar na cama, pensando em tanta coisa antes impensável, vasculhando dentro saídas e futuros possíveis. Os sonhos igualmente têm se intensificado, os pesquisadores também estão acompanhando isso. Muitos deles são perturbadores, outros tantos são enredos esperançosos de que a resolução dessa situação chegou e de que retomamos a normalidade da vida. Um tanto mais bem genuíno de nós – anseios, medos, angústias – chamando para si nossa atenção em enredos noturnos.

 

Porém, o fato é que, por ora, a maioria de nós está compulsoriamente neste contato sem folgas com o mundo dentro: dentro de casa, dentro da família, dentro de si. Hoje, mesmo para quem está em home office, os grandes trabalhos que precisam ser feitos diariamente são internos: cultivar uma convivência harmoniosa com a família, cuidar do bem-estar das crianças ou das pessoas mais velhas, eventualmente suportar a solidão, manter a saúde mental lidando com as turbulências emocionais causadas pelas restrições do momento e inúmeras incertezas sobre o futuro, e até mesmo cuidar pessoalmente da casa, sem poder terceirizar o serviço.

 

E por incrível que pareça é isso o que tem gerado uma situação de estresse generalizado e criado impactos psíquicos sem precedentes. Pouco familiarizados com este estado de coisas e em manter o foco no que está mais próximo de nós, com a intimidade mesmo, excessivamente voltados para fora e para uma rotina de buscas exteriores, reforçada por uma sociedade cuja disposição é excessivamente extrovertida, agora lutamos com a ansiedade, o tédio e muitos outros monstros que há muito estavam escondidos embaixo da cama. E queremos fugir como sempre fizemos.

 

Não havendo para onde, a pandemia vem nos mostrando insistentemente, semana a semana, pelos meses em que vai se estendendo, o nosso sério isolamento anterior, bem mais antigo e também muito mais prejudicial e insustentável: um isolamento de nós mesmos, da nossa família, da nossa casa, de tudo aquilo que deveria ser muito mais familiar, conhecido e amigável. Estranhamos a nós mesmos, criamos irritações generalizadas a respeito da intimidade da nossa própria vida.

 

Persistente, a quarentena parece nos mandar mensagens diárias de que é hora de enfim tirar tudo isso do confinamento. Quem está conseguindo encarar o desafio pode até mesmo extrair grandes benefícios da situação presente. O isolamento físico é estressante, mas hoje é simplesmente a grande proteção para as nossas vidas. O isolamento emocional, este sim é extremamente danoso. Temos a chance de revertê-lo justamente por conta da pandemia e sua prima-irmã, a quarentena. Isto é bem possível e minimiza o estresse, a ansiedade e a depressão. Podemos ganhar muito mais qualidade de vida justo em meio às crises quando encaramos os desafios que se apresentam, este é o grande ensinamento que poderia se tornar pandêmico.

 
 
Imagem: colagem de Nádia Guichon

 
 

Iana Ferreira
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