Fui fazer compras na internet e o site pediu login e senha. Eu, que um dia cadastrei-me ali e inventei um acesso, não me lembrava qual era. Mas são bondosos os sites, dando-me a chance de recuperá-los. Bastou clicar em “Esqueci minha senha” para, plim!, o código secreto surgir na minha caixa postal. É bom contar com a memória alheia, ainda que de uma máquina.

 

Quem dera fosse assim fácil restaurar as coisas deslembradas ao longo dos tempos, já que venho esquecendo não só senhas.

 

Esqueci, por exemplo, como fico de vestido curto.

 

Esqueci também como é não me preocupar com a barriga e usar tudo, tudinho que der na telha.

 

Esqueci o nome da senhora que vendia as cocadas mais gostosas do mundo na porta de casa, quando eu era criança. Em vez de “esqueci minha senha” eu queria, na tela do pensamento, a opção “esqueci o nome da senhora das cocadas”. Salivando, clicaria ali com a esperança de, nas redes sociais, localizar seus netos, quiçá bisnetos, apenas para lhes contar da minha cremosa, pedaçuda e doce lembrança.

 

Por falar no meu tempo de criança, esqueci como eram as férias escolares no final do ano, quando eu tinha três meses inteirinhos para fazer tudo ou nada, mais nada do que tudo.

 

Falando em não fazer, esqueci de ir à dentista este ano. Ano passado idem. A esta altura, doutora Fernanda desistiu de mim, arquivando-me, desesperançosa, nos casos de pacientes perdidos.

 

Por falar em paciente, esqueci, sobretudo, onde foi que perdi minha paciência. E essa, receio, não dá para reaver com um simples e-mail.

 

Ainda falando em escola, esqueci o que minha mãe mandava na lancheira. Penso nisso quase todo dia, enquanto preparo as dos meus filhos. Não para fazer igual, mas para lembrar como hoje tudo é diferente.

 

Esqueci também a receita do bolo Nega Maluca que ela fazia e eu cheguei a reproduzir, satisfatoriamente, por muitos anos. Há reminiscências que não podem mais ser acessadas, nem com senha. Certa vez, fiz de um jeito, não funcionou. De outra, mudei aqui, ali, e nem sombra do velho bolo. Não arrisquei a terceira tentativa. Não quis uma saudade bloqueada.

 

Falando em saudade, esqueci o dia em que minha gatinha Doris Day morreu, depois de catorze anos conosco. Mas não esqueci o dia que a encontrei, miúda e faminta, no metrô Anhangabaú e a levei para o trabalho, escondida dentro da mochila.

 

Esqueci outro tanto de coisas: como é ter medo de ir mal numa prova, como é voltar de uma balada com o sol raiando, como é fazer uma entrevista de emprego. São lembranças vencidas. Não é preciso recuperá-las. Estou, a todo momento, criando novas.

 

Imagem: Andrea Joseph

Silmara Franco
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