Artigo para o Jornal d’Aqui, outubro de 2020

Quem brincou ao pé de uma máquina de costura, com retalhos de tecido que eram deixados de lado, ou se divertiu se sujando de graxa nas engrenagens que sobravam de um motor, relógio ou qualquer outro maquinário em conserto experimentou um sabor de infância sem igual.

Eu tive esse privilégio. E vários outros, apesar de uma vida bem urbana e muitas vezes em meio a caixas empilhadas de mudanças que passaram por Brasília, Rio e outros lugares até aportar em São Paulo, já na adolescência e sem muitas brincadeiras mais.

Apesar de tantos sacolejos, várias incertezas e instabilidades, coleciono memórias de brincadeiras que tinham tanto afeto que parecem feitas do dia de hoje.

Algumas das melhores, sem dúvida, são da casa dos meus avós. Férias na casa dos avós costuma ser sempre uma combinação perfeita para produzir boas lembranças. No meu caso até morei com eles por um tempo, quando meu avô não estava muito bem de saúde mais. Nessa época, minha avó, que adorava costurar e costurava muito bem, ainda tinha um armarinho na garagem de casa, na Aldeota, bairro importante de Fortaleza. Mesmo eu sendo bem pequena, ela me deixava brincar no meio dos seus balcões, na lojinha que abria só depois do almoço, passado o calor maior do dia. Lá pelas três da tarde acontecia o movimento principal. As mulheres traziam retalhos dos tecidos que estavam costurando para encontrar a cor certa das linhas, de uma renda, dos botões, dos retrós e já nem me lembro mais do nome de tudo o que se vende num armarinho.

E eu podia me sentar num canto com os produtos fora de linha ou que haviam perdido seus pares ou que não sujavam muito. O restante a imaginação fazia! Minha própria loja, clientes bonecas, dinheiro de mentirinha, trocas, conversas baixinho, risadinhas, um convite para um bolo com suco de seriguela (lê-se se-ri-go-e-la), quando o pé estava carregado dessa frutinha que só experimentei por lá.

Anos depois, a promoção a poder vender de fato no balcão, receber dinheiro e dar os trocos, embalar os produtos em saquinhos que ainda eram só de papel, trouxeram seriedade e exultação ao que continuava sendo uma grande brincadeira.

 Por que brincamos tanto na infância e por que isso é tão sensacional?
E, depois, por que paramos de brincar?

Em meio a esse universo de costuras, tecidos, agulhas e linhas, uma vez minha mãe, que também costurava lindamente, me deu de presente uma máquina de costura de brinquedo. Para nossa grande frustração, a maquininha de plástico fazia mais barulho e trepidava do que deixava correr os panos e conseguia que a agulha descesse e subisse num ritmo que produzisse algo parecido com pontos regulares. Isso até ela começar, muito precocemente, a embolar a linha de cima e a de baixo e travar a cada meio centímetro de tecido. Os brinquedos de plástico nunca me deixaram boas impressões duradouras.

Infelizmente a Singer da minha mãe, comprada na Arapuã – puxa, aberta a sessão memórias realmente! –, era muito delicada e costumava dar uns defeitos seríssimos, que arrancavam suspiros desgostosos e boas notas de cruzeiro das economias no banco. Por conta disso, eu não podia nem tocar na maquinona pesada e mesmo se tivesse que esperar por perto para experimentar alguma roupa, sabia que precisava manter uma boa distância segura. Então, a maior proximidade que tive da costura foi mesmo na casa da minha avó.

Dessa forma, a tradição de mulheres que não eram costureiras profissionais mas eram excelentes costureiras se encerrou na minha mãe e nas minhas tias. Hoje eu tenho uma Singer modelo mais simples de todos, onde faço umas costuras retas muito de vez em quando. Bom, é certo que andei costurando várias máscaras no começo da quarentena. Isso até ver que as profissionais faziam as 3D e outros moldes sensacionais de forma impecável. Então, parei e nem uso na rua minhas máscaras caseiras.

Mas tenho costurado bonecas. Essas todas à mão.

Aliás, talvez o momento de brincar mais mágico que tenho para encerrar esse álbum de memórias do brincar foi de uma boneca de lã que a minha mãe, funcionária pública que mal parava em casa nos primeiros anos da minha vida, fez na minha frente em poucos minutos, uma verdadeira maga dos fios. O brinquedo foi nascendo de uma combinação de tranças e amarrações impressionantes e, voilà, logo eu tinha nas mãos minha boneca preta com olhos de botões transparentes e boquinha de coração. Quem pode esquecer algo assim?

Se você leu este artigo até aqui, talvez tenha agora avivadas várias lembranças das suas próprias brincadeiras de infância. As memórias são fortes quando há afeto. Então, agora que estamos nos aproximando dessa data comemorativa das crianças, cuja origem certamente está no interesse comercial de vender brinquedos, talvez possamos nos empenhar em resgatar um brincar saudável e afetuoso. Em geral, ele é mais afeito à simplicidade, aos materiais naturais, ao espaço deixado para a imaginação e, especialmente, quando permite a proximidade nas relações e com a vida que de fato vivemos. Aquela vida que as crianças olham extasiadas nós, adultos, “brincarmos” – e por isso querem nos imitar o tempo todo –, mas em meio a qual, infelizmente, nós franzimos o cenho e nos tomamos a sério demais desempenhando nossas tarefas ali.

Talvez nós mesmas(os) possamos a voltar a brincar. Os domingos e começos de semana são amargos ou angustiados? É porque nos sentimos empurradas(os) para um trabalho e afazeres do dia a dia que deixaram de ser uma grande diversão criativa. O caminho de volta é resgatar esse divertimento experimentativo com a vida. Leveza, prazer, graça e bons afetos são possíveis aí.

 

Feliz dia do brincar para você, para nós!

Feliz dia da sua criança neste próximo 12 de outubro. Sendo possível, lembre de presentear uma criança que precise!

 

Quer conhecer e participar de uma atividade especial com bonecas que vai acontecer agora em outubro? Veja AQUI 

 

 

Iana Ferreira
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