Eis o que vejo em seus olhos neste momento: noite chuvosa, rua estreita, postes de luz deslizando distância adentro. A água corre pelas calhas de telhados muito íngremes. Debaixo da boca de cobra de cada calha há um balde de anéis verdes. Fileiras de baldes delineiam as paredes negras de ambos os lados da chuva. Observo-os a se encherem de mercúrio frio. O mercúrio pluvial incha e transborda. As luzes nuas flutuam a distância,seus raios espetados na escuridão chuvosa. A água dos baldes está transbordando.
Assim ganho entrada a seus olhos nublados, para uma estreita alameda de brilho negro onde a chuva noturna gorgoleja e farfalha. Me dê um sorriso. Por que olha para mim tão duramente e sombria? É de manhã. A noite inteira as estrelas gritaram com vozes infantis e, na cobertura, alguém lacerou e acariciou um violino com um arco afiado. Olhe, o sol atravessou lentamente a parede como uma vela de barco ardente. Você emana uma névoa esfumaçada envolvente. Estrelas poeirentas turbilhonando em seus olhos, milhões de mundos dourados. Você sorriu!
Saímos para a sacada. É primavera. Lá embaixo, no meio da rua, um rapaz loiro encaracolado trabalha muito depressa desenhando um deus. O deus se estende de uma calçada a outra. O rapaz segura um pedaço de giz na mão, um pedacinho de giz branco, e está de cócoras, circulando, desenhando em traços amplos. Esse deus branco tem grandes botões brancos e pés voltados para fora. Crucificado no asfalto, olha para o céu com olhos redondos. Tem um arco branco como a boca. Um charuto do tamanho de um tronco aparece em sua boca. Com traços helicoidais o rapaz faz espirais representando a fumaça. Braços na cintura, ele contempla o seu trabalho. O rapaz chutou o giz no ar e entrou correndo. No asfalto arroxeado restou o deus branco geométrico, olhando para o céu.
(continua)

Vladimir Nabokov, Contos reunidos, Rio de Janeiro: Objetiva, 2013

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