Artigo para o Jornal d’Aqui, abril de 2020

 

Era fevereiro quando escrevi um artigo sobre amor próprio, amor por si, autoamor. Eu o reli hoje e encontrei um texto meio duro, conceitual, não muito amoroso. Mas o tema foi bom, essencial, então aceitei. E como era extenso, eu havia prometido uma segunda parte pro mês seguinte.

Acontece que março chegou e junto com ele a pandemia no Brasil. Semanas depois, a quarentena. O novo texto era urgente: cuidados, proteção e medidas para garantir saúde e algum bem-estar físico e mental neste período de isolamento.

O ano seguiu. As águas de março não vieram desta vez – foi o março mais seco de x décadas, constataram os meteorologistas, tentando nos oferecer alguma segurança na solidez de seu conhecimento. Mas o outono veio sim, e o sol já mudou completamente seu curso no céu. E seguimos em quarentena, enquanto o hemisfério de cá vai ficando mais frio e menos luminoso, para a alegria dos que gostam de casacos e meias, cobertores e um aquecedor.

Quase fim do mês e já é hora de sentar para escrever novamente. O tempo passa lento e rápido na quarentena, andei pensando. Às vezes vejo os dias se arrastarem, mas, minha nossa, já é quase final de abril.

Toda essa digressão é porque não sei sobre o que escrever. Muito a falar ainda sobre pandemia, cuidados etc. Mas o tema também cansa. E ainda tem o amor. Penso em juntar as duas coisas, porque honestamente já nem sei como eu ia continuar o primeiro texto sobre o amor, ainda que tenha deixado umas palavras rascunhadas.

Não é difícil juntar os dois temas. Afinal, a vida segue em quarentena, e se amor é urgência humana permanente, certamente é urgência ainda maior agora!

Tenho pensado que a quarentena está sendo um exercício de amor constante. Ou talvez seja melhor dizer um desafio de amor constante, dado que sabemos pouco sobre viver o amor. E assim sem saber, adentramos uma experiência radical, que só pode ser atravessada com muita força positiva interna, dentre elas, na linha de frente, compaixão, paciência, resiliência, tolerância, solidariedade etc. etc. e, claro, amor.

Amor por nós e pelos outros. Amor pelo que gostamos e pelo que não gostamos. Amor pela solidão ou pelo convívio, pelas restrições e pelos recursos de que dispomos, pelo que podemos ter agora e pelo que ficou para depois. Amor pelo corpo, pela saúde, pela casa limpa, pelas compras desinfetadas, pela comida no fogão.

E de repente nos atravessa a lembrança de que muitas pessoas não têm nada disso neste momento. E nossa autorização de tentarmos ser felizes em nossas quarentenas abastadas é abalada. Culpa social. De nada serve. Amor sim. A primeira imobiliza. O segundo move.

E precisamos nos mover. Movimento, desenvolvimento são essência da vida, este rio que flui incessante. Pois então vamos descobrindo que sem amar e abraçar todas as coisas não seguiremos, paralisamos no desconforto.

A esta altura muitos/muitas de nós está bem saturado/saturada. Foram-se as distrações. Os dias são quase iguais. Estamos conosco e, às vezes, com nossas famílias muito mais tempo que o normal. E vamos nos descobrindo entediados. Estamos entediados? Ou somos entediados? Se olharmos bem, pouco criativos e um tanto acomodados, somos. E já éramos. Apenas conseguíamos nos distrair disso enchendo os dias com muita movimentação e afazeres.

Mas agora o planeta parou. Nosso planeta “eu” também. Externamente, em poucas semanas, águas e ares recuperaram fluxos e se tornaram mais puros. A tendência natural é pelo equilíbrio, nos mostra o mundo, o ambiente. Nossos fluxos internos também anseiam por ficarem mais limpos e desobstruídos. O fluxo para os outros “eus” também precisa ser desobstruído. Como fazer tudo isso? De que fonte brota e empurra este fluxo? Do amor.

Amor-inclusão. Amor-apreciação. Amor-proximidade. Amor-não isolamento.

Amor para dentro e para fora. Sem a experiência interna de amor, não saberemos direcionar amor para fora. Crianças carentes de atenção e de mimos do mundo, vagamos como dragas, autocentrados, reclamando sem parar que nada nos atende inteiramente. Isso é o que somos em nossa carência de amor.

Até o mundo ficar realmente carente de quase tudo…

 

Hoje, depois de muito, muito tempo, vi o dia amanhecer. Não sei porque acordei tão cedo. Mas depois de algum tempo brigando com o despertar repentino, aceitei o que vinha. Então, extraí o que havia de melhor deste momento: lá fora a luz era tão suave e o ar tão fresco…! Um presente deste dia de quase final de abril em quarentena, em casa.

Eu me pergunto o que ficará desta experiência. O dia parece responder: “O que você cultivar nela”. E dialogamos, nestes diálogos inventados de quarentena: “Espero que coisas novas, que estão precisando amanhecer”.

Se o mundo mudará radicalmente ou se simplesmente voltará à antiga normalidade – será que é mesmo o que devemos almejar? – depende do que vamos plantando nesses dias. Muito trabalho e escolhas a fazer. Amor? Parece bom. Temos opção e algum tempo pela frente.

 

 

Iana Ferreira
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