Ela caminhou muito. O sol do meio-dia fez que o suor escorresse riscando a sujeira no seu rosto. O vento desgrenhou tanto seu cabelo até que ele mais parecia um ninho de cegonha com gravetos enfiados de qualquer jeito. No meio da noite, ela chegou a um pomar real onde a lua fazia reluzir os frutos nas árvores.
Ela não podia entrar já que o pomar era cercado por um fosso. Caiu, então, de joelhos pois estava faminta. Um espírito etéreo vestido de branco surgiu e fechou a comporta para esvaziar o fosso.
A donzela caminhou por entre as pereiras sabendo de algum modo que cada fruto perfeito havia sido contado e anotado, e que eles eram também vigiados. Mesmo assim, um ramo curvou-se bem baixo para que ela o alcançasse, fazendo o galho estalar. Ela tocou a pele dourada da pera com os lábios e comeu ali em pé ao luar, com os braços atados em gaze, os cabelos desgrenhados, parecendo uma mulher de lama, a donzela sem mãos.
O jardineiro viu tudo mas reconheceu a magia do espírito que protegia a donzela e não se intrometeu. Quando ela acabou de comer aquela única pera, ela se retirou atravessando o fosso e foi dormir no abrigo do bosque.
No dia seguinte, o rei veio contar suas peras. Ele descobriu que uma estava faltando mas, olhando por toda a parte, não conseguiu encontrar o fruto desaparecido. Quando lhe perguntaram, o jardineiro tinha a explicação.
— Ontem à noite, dois espíritos esgotaram o fosso, entraram no jardim à luz do luar e um deles que era mulher e não tinha mãos comeu a pera que se oferecia a ela.
O rei disse que iria montar guarda naquela noite. Quando escureceu, ele veio com o jardineiro e o mago, que sabia conversar com espíritos. Os três se sentaram debaixo de uma árvore e ficaram vigiando. À meia-noite, a donzela veio flutuando pela floresta, com as roupas em farrapos, o cabelo desfeito, o rosto sujo, os braços sem mãos e o espírito de branco ao seu lado.
Eles entraram no pomar da mesma forma que antes. Mais uma vez uma árvore curvou-se graciosamente para chegar ao seu alcance, e a donzela sorveu a pera que estava na ponta do ramo. O mago aproximou-se deles, mas não muito.
— Vocês são deste mundo ou não são deste mundo? — perguntou ele.
— Eu fui outrora do mundo — respondeu a donzela. No entanto, não sou deste mundo.
— Ela é humana ou é um espírito? — perguntou o rei ao mago, e o mago respondeu que era as duas coisas. O coração do rei deu um salto, e ele se apressou a chegar até ela.
— Não renunciarei a você — exclamou ele. — Deste dia em diante, eu cuidarei de você.
No castelo ele mandou fazer para ela um par de mãos de prata, que foram amarradas aos seus braços. E foi assim que o rei se casou com a donzela sem mãos.
Passado algum tempo, o rei teve de ir combater num reino distante e pediu à mãe que cuidasse da jovem rainha, pois ele a amava de todo o coração.
— Se ela der à luz um filho, mande me avisar imediatamente.
A jovem rainha deu à luz um belo bebê, e a mãe do rei mandou um mensageiro até o rei para lhe dar as boas novas. No entanto, a caminho, o mensageiro se cansou e, chegando a um rio, ficou cada vez com mais sono. Afinal, adormeceu profundamente às margens do rio. O Diabo saiu de trás de uma árvore e trocou a mensagem por uma que dizia que a rainha havia dado à luz uma criança que era metade cachorro.
O rei ficou horrorizado com a notícia, mas mesmo assim mandou de volta uma carta recomendando que amassem a rainha e que cuidassem dela nesse terrível transe. O rapaz que vinha trazendo a mensagem mais uma vez chegou ao rio e, sentindo a cabeça pesada como se tivesse comido todo um banquete, logo adormeceu junto à água. Foi quando o Diabo mais uma vez apareceu e trocou a mensagem para “Matem a rainha e a criança”.
A velha mãe ficou abalada com essa ordem e mandou um mensageiro pedindo confirmação. Corriam os mensageiros de um lado para outro, cada um adormecendo junto ao rio enquanto o Diabo trocava as mensagens para outras que iam ficando cada vez mais apavorantes, sendo que a última dizia: “Guardem a língua e os olhos da rainha como prova de que ela está morta”.
A velha mãe não pôde suportar a ideia de matar a doce rainha. Em vez disso, ela sacrificou uma corça, arrancou sua língua e seus olhos e os escondeu. Em seguida, ela ajudou a jovem rainha a atar o bebê junto ao peito e, cobrindo-a com um véu, disse que ela precisava fugir para salvar a vida. As mulheres choraram e se beijaram na despedida.
* Versão da história que se encontra no livro Mulheres que correm com os lobos, de Clarissa Pinkola Estés, Ed. Rocco.
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