Artigo para o Site da Granja, agosto 2020

Se você está considerando com seriedade o perigo invisível que se postou logo ali depois do portão de casa, se sai o mínimo possível e se as suas saídas são sempre tomadas de algum nível de preocupação, se faz um exercício constante de imaginar o que são 10, 50 ou 100 mil mortos e consegue se assombrar com isso, se todos os dias acorda e se lembra de que existe uma pandemia séria em curso, você provavelmente também já se pegou bastante surpresa/o e até indignada/o a respeito de por que os dados concretos, estatísticas, números, casos e histórias contadas e recontadas sobre infectados e, infelizmente, mortos não surte efeito em uma grande parcela das pessoas, no Brasil e no mundo. Como é possível que números – poderia haver informação mais indiscutível? – não façam sentido e sejam desconsiderados por tanta gente?

Sair de casa e ver um movimento quase normal de carros e pessoas na rua pode até colocar em dúvida a nossa própria sanidade. Pode ser que pensamentos como “devo estar exagerando”, “puxa, quem sabe isso já esteja mesmo passando” etc. se insinuem. E, afinal, quem não gostaria de que eles pudessem enfim ficar e estarem de fato corretos!?

Mas, então, talvez você ouça o noticiário ali mesmo no carro e volte à realidade, entendendo que é como se uns três ou quatro aviões tivessem caído num só dia e apenas no território brasileiro. Daí, o jeito é recolher a pressa e tratar de ver como aguentar essa situação um tanto de tempo mais. Pra você é assim? Melhor se for. No entanto, para o seu vizinho, um parente, aquele amigo que agora você pensa se realmente conhece e outras tantas pessoas não é. Basta ver que bares, academias, salões, shoppings estão rapidamente ficando movimentados de novo.

E você está lá com a sua máscara (agora já tem de alguns tantos modelos e estampas), ficando especialista em tipos de álcool em gel, desinfetando tudo o que entra em casa, fazendo até as compras ficarem em quarentena, desviando implacavelmente das pessoas no corredor do supermercado, adiando encontros e as atividades que tanto ama, enfrentando todos os dias aquele baita desafio de não abraçar, não beijar nem se aproximar muito de quem gosta e se pergunta de novo e de novo: “Como é possível? Como é possível que alguém negue o que está acontecendo?”.

Muito bem. Sim, é possível. É o que estamos vendo. E a razão para que muitos se entreguem despreocupadamente e com entusiasmo ao negacionismo é bem simples: conhecimento, raciocínio, cognição humanos não são funções separadas da subjetividade, de impulsos inconscientes e nem mesmo de uma parcialidade da consciência, que “escolherá” o que quer ou pode enxergar. E em determinadas condições, estes últimos fatores certamente serão os que vão prevalecer e influenciar de modo significativo o resultado final de uma elaboração que deveria ser apenas racional.

Dito de outra forma: informações, por mais objetivas que sejam, são sempre processadas por raciocínio e lógica, mas também por desejos, emoções, crenças, inclinações, simpatias e antipatias, tendências, favoritismos, preferências, ideologias etc. etc. etc. Nosso pensamento está sempre sujeito a ser distorcido, se tornar parcial ou a pegar atalhos apontados por este universo infinito de fatores que também que nos habitam para além da lógica e da racionalidade.

O fato é que, voltando à situação atual, a ansiedade causada pela perspectiva de grandes sacrifícios ainda porvir, o desejo de restabelecer de pronto uma situação mais conhecida e confortável, a busca de segurança imediata, a antipatia que eventualmente pré-exista em relação a certas posturas, concepções e formas de ver o mundo, a tentativa de manter um sistema de crenças e ideologias, muitas vezes políticas e religiosas, e outros elementos semelhantes vão cozinhando ideias e concepções no caldeirão do negacionismo. E o que vemos é que quando interesses são ameaçados, ainda que por fatos muito concretos, porém indesejados, o pensamento humano pode fazer desaparecer informações e criar com muita facilidade a negação.

Há saídas? Sim. Mas em geral elas não vêm de argumentações lógicas repetidas à exaustão em meio a embates.

Uma das maneiras de se parar um processo de negação, infelizmente, é quando a realidade bate à porta de forma impiedosa, quando a realidade enfim se impõe – sim, no caso atual, quando se perde alguém próximo. E olhe que ainda assim o pensamento pode distorcer tudo – “tinha que ser”, “Deus quis”, “foi o destino” etc. – e não se dá razão à razão dos fatos. Contra as emoções, apetites, crenças é difícil lutar.

Quer ajudar alguém? Faça a sua parte. Não negue, mantenha os cuidados, não relaxe (ainda!). Este é o conta-gotas homeopático que pode fazer diferença coletivamente um dia desses, quem sabe?

Iana Ferreira
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