Se você saiu impactada/impactado do filme e, pior, identificando-se de alguma forma com Arthur Fleck, o Coringa, não se assombre. Tem acontecido com muita gente. A identificação e, claro, o susto com isso… Este texto é sobre o Coringa que nos habita.

Mas, antes, se você não assistiu ao filme, por favor, faça isso. É um drama que aborda de forma magistral a vida humana contemporânea e a questão da saúde mental. É uma construção fantástica de um personagem, alguém que, embora inicialmente não pareça, pode estar/ser muito próximo de cada um de nós. É uma retratação precisa da vida psíquica, reunindo fatores coletivos e individuais que, como dito, constituem ou não sua saúde.

Pois o filme retrata algumas das várias instâncias em que vai se constituindo ou se agravando o adoecimento de Arthur Fleck, morador de Gotham (New York) City, que carrega um comprometimento neurológico sério[1], vive com a mãe e tenta sobreviver trabalhando como palhaço nas ruas da cidade, enquanto sonha em fazer sucesso como comediante. Aqui já ganham contorno algumas das instâncias que afetam Arthur e que também são as instâncias que podem nos afetar e constituir nossa saúde ou adoecimento, daí a identificação que vai se estabelecendo.

Numa cidade-lixo, uma metrópole cinzenta que está sendo invadida por ratos por conta da greve dos lixeiros – vai ter um pouquinho de spoiler sim, mas não muito, prometo! – neste lugar repleto de lixo concreto e simbólico, sujeira, desordem, caos humano, a existência de Arthur enfrenta uma série de violências. Da primeira ação do filme, quando é espancado por adolescentes enquanto trabalha, depois com os colegas do trabalho, com estranhos, violências físicas, violências psíquicas, estranhamentos e também invisibilidade, incontáveis situações colocam o personagem principal em seu “não lugar” no mundo das pessoas “normais”.

As violências sutis são de longe as mais tocantes. Arthur apanhará outras vezes, mas aquilo que nos apanha em cheio e nos arrasta para junto do seu drama é o sutil. É, por exemplo, não ser visto nem ouvido. É ser estranhado. É ser apartado por conta de suas particularidades. É não ter um olhar e escuta nem mesmo daqueles que deveriam lhe oferecer isso, como a assistente social que repete as mesmas perguntas para Arthur toda semana e jamais escuta a profunda descrição que ele faz a respeito da sua vida, uma existência quase sem existência – “durante toda a minha vida, eu nem sabia se eu existia de verdade, mas eu existo e as pessoas estão começando a perceber”. É também a incompreensão no ônibus, no metrô, no trabalho, vinda de negros, brancos, pobres, ricos, de todo lugar e de todos, indiscriminadamente. E o que dizer da mãe aprisionada em sua própria condição doentia, que apreende o filho em enredos alucinados e no papel de “Feliz”, como ela o chama, afinal ele “[você] veio ao mundo para trazer alegria e riso” apenas?

Ora, quem não carrega algum tipo de golpe existencial mais ou menos profundo vindo de instituições, da própria família e/ou da sociedade? Se você não, pode saber que é uma/um felizarda/felizardo. Use bem essa condição privilegiada.

Mas sigamos, porque se pode parecer que Arthur fica como uma pobre vítima nessa história, isso é um grande engano. Com todo o comprometimento que assola a sua existência, ele segue incansavelmente, como um patinho feio buscando a si mesmo. Ele segue uma jornada de sobrevivência, sobrevivência física e também psicológica. Uma jornada de muita ação. Mas, calma, não espere o movimento truculento dos filmes de ação conhecidos até aqui. A ação de Arthur e seu Coringa é interna. Enquanto Arthur Fleck sai em busca de seu ganha-pão e da realização do seu sonho de fazer sucesso levando alegria e riso, ele vai também em busca da sua própria história.

Quem diria, mas um indivíduo com tamanho comprometimento, em meio ao caos do seu cotidiano, também busca de se conhecer, entender seu quadro, descobrir suas origens, compor uma história que lhe aparece como que fragmentada, desconexa e que vai revelando aos poucos, de fato, lacunas, rupturas e fatos incompreendidos ou ilógicos de grande impacto.

Ao mesmo tempo, uma parte de instrumentos essenciais para a tal jornada e para a própria vida lhe falta. E a sociedade, o grupo de amigos do trabalho, lhe oferece a ferramenta errada, a mesma que eles usam de forma ignorante: uma arma para se defender. O estrago a partir daí é grande, pode-se imaginar.

Sua defesa até então eram seus sonhos de ser comediante, seu personagem, o Jocker, o Coringa, que dava alguma conta de integrar o riso descontrolado em sua história; era o cartão explicando que tinha um problema de saúde e por isso não conseguia controlar sua risada, cartão que precisava entregar às pessoas quando as crises de riso aconteciam em público; eram até mesmo as alucinações com afetos que de fato não vivia. Agora ele começará a se familiarizar a puxar outros gatilhos. O pior e o mal se avizinham.

Então, é aqui que o filme cria um quadro ainda mais fantástico da realidade que vivemos. Sabendo de um crime cometido no metrô por um homem com máscara de palhaço, a sociedade, os moradores de Gotham City colocam a mesma máscara e saem às ruas para protestar contra os seus governantes, aqueles que não conseguem resolver o lixo da cidade nem inúmeros outros problemas da cidade-lixo. A metrópole enlouquece. É tomada por palhaços e, em meio ao caos e à loucura, estes, por sua vez, encontram Arthur voltando enfim num camburão da polícia e o tomam como seu grande herói. Enfim, os aplausos são conquistados, algum reconhecimento. Arthur Fleck é visto.

Ele não tinha nenhuma condição nem a intenção de liderar protestos. Equilibrava-se num tênue fio entre a vida e a morte. Mas a loucura vazou, extrapolou o indivíduo. Melhor dizer: a loucura do indivíduo a caminho de ser internado num hospital psiquiátrico, enfim fica manifestada fora, escrachadamente mostra-se no coletivo – sua raiz? – vibra na loucura de todos os “normais” que em outras ocasiões se deparariam que o riso descontrolado de Arthur e o espancariam.

Impossível não nos sentirmos assolados por isso. Como também não dá para negar que nos sentimos vingados em vários momentos do filme e vibramos nas piores ações de revolta de Arthur. Sua jornada agita nosso mundo interno e alcança as sombras mais profundas. Ressonância e vibração são inegáveis da primeira à última cena.

Então, impossível contestar, tudo indica que Arthur e seu Coringa estão em mim e em você, estão em todos nós. O filme ressoa forte. É magistral e muito potente em fazer isso.

 

Assim, pode ser que você saia do cinema e tenha vontade de atirar da ponte o policial que te multou – p…, em pleno domingo tinha que ter um carro de polícia no meio do viaduto pra te pegar sem cinto saindo do filme meio atordoada ainda??? Aconteceu comigo. E, pois é, tinha que ter. E o cinto é obrigatório, tinha que usar. Agora paga-se a multa, levam-se os pontos e enquanto o seu/meu Coringa acorda, uma outra parte mais ou menos disponível provavelmente vai estar dizendo pra simplesmente fazer o que tem que ser feito de acordo com nosso código social. Porém, o instintivo descontrolado estava bem ali, à espreita. Ficou nítido depois do Coringa.

Este é o efeito que o filme faz. Você se reconhece.

Enquanto isso, a música da trilha sonora ainda continua a ressoar na voz de Frank Sinatra:

“That’s life (that’s life), that’s life and I can’t deny it (…) My, my!”

[“É a vida (é a vida), é a vida e eu não posso negar (…) Nossa, nossa!”]

 

#Coringa #ArthurFleck #saúdemental #vidacontemporânea #humanidade #inclusão #cuidados #jornadainterna #lutaantimanicomial

 

Texto publicado no Jorna d’Aqui, Granja Viana, Cotia, SP, em 22 de outubro de 2019.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[1] Não fica totalmente claro no filme, mas Arthur Fleck parece sofrer de uma condição chamada de Afeto Pseudobulbar, em que ocorre uma perda de tecido cerebral do córtex frontal (que modula as áreas mais profundas das emoções), decorrente de doenças ou acidentes que comprometem essa região do cérebro. As reações emocionais e comportamentais da pessoa passam a ser involuntárias e sem sincronia com seus sentimentos e humores reais. Arthur Fleck apresenta em vários momentos risos incontroláveis (a icônica risada do Coringa), que são completamente inapropriados para a situação que está vivendo. Numa determinada cena do filme, há uma indicação de um sério acidente doméstico ocorrido na infância, que pode ser a origem do seu distúrbio.

Iana Ferreira
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