Um convite a mudar as lentes para o mundo, para os outros e para si

“A briga ia ser formidável e estragaria a festa da família mais uma vez, porque, além das comidas e sobremesas maravilhosas, é isso que melhor conseguimos preparar para cada reunião familiar.”

 

Foi mais ou menos assim que começou a primeira sessão de terapia do ano (*situação e nomes fictícios): uma quase discussão acalorada, contada no calor deste janeiro muito quente, suavizado temporariamente com a ajuda do aparelho de ar recém-instalado.

 

Quem já não vivenciou isso em uma reunião familiar? É certo que há todo tipo de família: há famílias pacíficas e famílias belicosas, há famílias silenciosas e famílias de picuinha constante, há famílias frias e distantes e famílias que se embolam com facilidade, há famílias do eterno “deixa pra lá” e há famílias inflamáveis. Há famílias amorosas também. Há realmente todo tipo de família, com os mais diversos tropeços compulsivos ou pactos nervosos ou ainda com suas conquistas verdadeiras e maravilhosas.

 

No entanto, mesmo não sendo possível generalizar, quase todo mundo já presenciou e tem na memória algum momento em que uma tensão coletiva jogou um assunto delicado com estardalhaço e sem cerimônia sobre a mesa. E fez a sobremesa perder o sabor e toda a refeição azedar. Pode não ter sido na sua família, mas muito provavelmente você já presenciou um desses momentos desagradáveis e invariavelmente constrangedores.

 

Na situação que estava sendo narrada, o rumo acabou sendo outro. Berta prosseguiu: “Então, eu ouvi e vi que a única coisa diferente que eu poderia tentar fazer era… ceder. E, então, eu cedi”. Ela estava tão triste e cansada da repetição infrutífera que buscou desesperadamente uma tecla de não repetição, o avesso do Ctrl-C/Ctrl-V, para mudar o rumo dos acontecimentos. E o que encontrou foi a possibilidade de ouvir mais profundamente o que a outra pessoa dizia e não resistir, vasculhar o que havia de razão naquela fala e não querer fazer prevalecer o seu ponto de vista. “Funcionou”, dizia ela minutos depois com entusiasmo.

 

À primeira vista, ceder pode dar a impressão de ser uma atitude ruim. “Ah, acabei cedendo”, “Mais uma vez tive que ceder” e por aí vai. De fato, muitas vezes cedemos em detrimento de nós mesmas/nós mesmos, sem consciência do que estamos fazendo, sem escolha ou sem liberdade para fazer diferente, por coação de uma pessoa ou situação que sentimos que é mais forte do que nós. Ceder assim é realmente prejudicial e compromete a saúde e o desenvolvimento psíquicos.

 

Não é disso, no entanto, que estamos falando. Há uma outra concessão que abre portas. Há um tipo de concessão que nos abre para caminhos novos e diferentes direções na vida. Há concessões que nos deslocam e nos permitem ver as situações e a nós mesmos de forma diferente. E isso é o começo da transformação possível.

 

Essa concessão abala a nossa visão costumeira das situações – que é, precisamos ceder ao menos de leve a esta ideia, sem dúvida, limitada. Nossa visão é apenas isto: a nossa visão, um ponto de vista, a visão de um dos ângulos da história. Mesmo assim, nos aferramos normalmente a ela com toda força.

 

Esta visão, além de parcial, tem outra característica temerosa: ela é um tanto automática e pré-formatada. Sabe aquela teimosia irracional e persistente, rápida no gatilho, em especial nas relações mais íntimas e mais antigas, que aciona com agilidade o pensamento do “lá vem ela/ele de novo com isso” ou “já vi esse filme”? Pois é. Nessas horas, interrompemos o contato com a situação “fora” e vasculhamos rapidamente nosso arquivo interno, com seus processos já percorridos, concluídos e encerrados, para simplesmente proferir a mesma sentença final. A seguir, aborrecimentos, caras fechadas, silêncios pesados, mas, mais cedo ou mais tarde, o mal-estar passará, temos certeza disso.

 

O problema é quando de novo e de novo o tema se reapresenta. No fundo, a situação não encontrou resposta, não ficou satisfatória, não avançou e, dessa forma, ela simplesmente não vai descansar, pedindo constantemente algum tipo de dissolução – boa ou má! Então, alguém entra com um novo recurso, pede revisão, reapresenta a questão. E isso vai assim até que das duas uma: ou o tema provoca uma ruptura (separação, briga mais definitiva, colapso da relação, distanciamento) ou, o que é bem pouco comum e muitas vezes só conseguimos fazer com ajuda, aceitamos olhar os fatos de uma forma diferente.

 

Aceitar o ponto de vista de outra pessoa é nos deslocar do nosso. E, por incrível que pareça, quando feito de forma habilidosa e livre, isso costuma trazer grande alívio e distensionamento. Não é preciso aderir integralmente ao que o outro diz ou pede. Uma vez aprendi a regra do 0,5% e a considero muito poderosa. Entre o sim total e o absolutamente não, há a possibilidade de dar, por exemplo, 0,5% de razão ao que nos dizem, nos propõem ou nos pedem. Que tal tentar? Esta ferramenta é mágica, porque 0,5% não é ameaçador nem invasivo e, ao mesmo tempo, já consegue nos deslocar significativamente de um ponto de vista ego-limitado.

 

Foi o que Berta intuitivamente fez. E a narrativa que se seguiu foi a de experimentar uma visão fresca e revitalizada, de desarmar conclusões pré-fabricadas, com seus resultados também já conhecidos e pré-formatados. Uma experiência de escuta, de abertura sem tensões, de ceder em seu melhor sentido. Uma lavagem da alma, férias e descanso profundos. Uma consultoria sábia e muito bem-sucedida.

 

Quando parou para ouvir, Berta soube um tanto mais de si. E se conhecer é sempre sinônimo de amadurecimento, fortalecimento e progresso, embora isso nem sempre seja fácil e agradável – ora, não era à toa que resistíamos a enxergar ou a ouvir algo a nosso respeito; muito provavelmente quando isso enfim aconteceu entramos em contato com algo desagradável, mas este é um medicamento necessário. Quando soube mais de si, estando mais “senhora” de si também, pôde, além de tudo, derrubar a resistência e a tensão que havia entre as pessoas. “E a festa estava salva”, concluiu rindo.

 

Por este e vários outros motivos, vale estar atenta/o. Esse tipo de situação pode vir a qualquer hora e de qualquer lugar: no comentário daquele seu primo mais chato, na opinião do irmão que você considera problemático, na fala do seu filho de cinco anos. Se a pessoa não está em delírio nem em alucinação, convenhamos, ela deve estar vendo algo que tem ao menos 0,5% de chance de ser válido. Numa próxima vez, sugiro ao menos averiguar. Isso nos fortalece e fortalece os vínculos. Com apenas 0,5% e muita consciência mais, a vida certamente fica mais florida.

 

Imagem: Laura Graves

 

Artigo para o Jornal d’Aqui, Granja Viana, Cotia, SP

 

 

Iana Ferreira
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