Meu pai só anda de Crocs.

 

Depois que descobriu o calçado que não o deixa escorregar nem em chão de ladrilho ensaboado, Seu Tonico nunca mais quis saber de outra coisa. Dia e noite, noite e dia. Primavera, verão, outono e inverno. Casamento, batizado, passeio no shopping, consulta no cardiologista, férias na praia, almoço na casa dos filhos? Crocs. E, apesar de ter outros exemplares, há o eleito.

 

Teoricamente indestrutíveis, os Crocs do velho Tonico contrariaram as previsões e ficaram mais gastos que pneu careca. Andou levando uns tombos, nada bom para quem tem oitenta e três anos. “Vamos comprar outro, pai?”. Declinou o convite o quanto pode; não era necessário, os deles estavam “tão novos”.

 

Foi difícil convencê-lo. Aliás, anda difícil convencê-lo de muitas coisas, ultimamente. De atualizar a dentadura, de afrouxar o cinto (um medo inexplicável de que as calças desabem). Na velhice, ou se convence de tudo, ou se convence de nada. Nada importa, tudo importa ou importa de um jeito diferente do senso comum.

 

Meu pai foi sapateiro na juventude. Primeiro emprego quando chegou a São Paulo, anos cinquenta. Alguém lhe arrumara trabalho em uma fábrica – Calçados São José, ele nunca esqueceu. Assim como ainda se lembra dos termos que envolvem seu feitio: cabedal, balancim, cambrê. Ganhasse hoje um pedaço de couro e solados de borracha, talvez confeccionasse os próprios chinelos. (Que seriam inúteis, ele não usa chinelos. Só Crocs.)

 

Por conta da antiga profissão, meu pai não é freguês comum e costuma dar uma aula de sapataria aos vendedores. No dia de ganhar os Crocs novos, ele pôs a vendedora doida. Não deixou a mocinha ajudá-lo a calçar, pois ela não estava fazendo aquilo direito.  Explicou a engenharia da peça, discorreu sobre como se escolhe um calçado novo, a distância correta entre o fim do dedão e o limite do sapato. Experimentou vários modelos, deu voltinha na loja, analisou e deu o veredito: “Gostei deste”. A equipe da loja, compadecida, respirou aliviada.

 

“Já vai com ele, pai!”. E, para não correr o risco de ele voltar a usar os Crocs gastos, eu e meu irmão inventamos que a loja dava cinquenta por cento de desconto se ele deixasse o par velho para reciclagem. A vendedora entrou na onda e também tentou persuadi-lo. Não funcionou: ou ele levava seus amados Crocs para casa, ou nada feito.

 

Como pais rendidos diante da birra de seu rebento (porque toda história se inverte, um dia), cedemos: “Tá bom, pai. Leva.” E lá foi ele, feliz da vida, carregando seus velhos e fiéis companheiros nos braços, os novos companheiros nos pés. Que ninguém chegasse perto da sua sacola; Seu Tonico rosnava.

 

Desde aquele dia, os Crocs novos estão no armário, ao lado dos velhos. Não saem de lá nem para buscar o jornal. Acabou pegando emprestado de alguém outros Crocs, usados, feiosos. E é com esses que ele agora vai pra cima e pra baixo: casamento, batizado, passeio no shopping, consulta no cardiologista, férias na praia, almoço na casa dos filhos. Se lhe perguntam onde os arrumou, ele diz que ganhou. E mostra, orgulhoso, o solado antiderrapante.

 

Quem derrapa sou eu, na paciência.

 

Mas meu pai está feliz. Então eu também vou ficar.

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Silmara Franco
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