Artigo para o Site da Granja, outubro de 2020

Se como eu você já percorreu pelo menos umas quatro ou cinco décadas neste planeta, seu tempo também é aquele em que redes eram basicamente de dormir, de pescar, de colocar no cabelo pra fazer aula de balé, de vôlei, de circo – aquela que vai embaixo do trapézio dos malabaristas – ou rede de televisão, de lojas, de serviços e coisas parecidas. Network, internet, rede de computadores e rede social são invenção bem mais recente.

Hoje, no entanto, se procurarmos em algum buscador a palavra “rede”, todos os cem primeiros tópicos que vão surgir dizem respeito a essas redes modernosas. Se buscarmos uma imagem de “redes” então, dificilmente aparecerá algo como uma rede de balançar esticada entre as árvores ou numa varanda antes do milésimo tópico. Tudo o que se vê são círculos, pontos ou até pessoas estilizadas, conectadas por tracinhos ou cabos.

Estas são as principais referências para rede hoje em dia. Claro, não é? Afinal, não só caímos nas redes dos tempos modernos, como nos emaranhamos completamente em várias delas.

Quando elas surgiram, imediatamente veio junto a expressão “navegar na rede”. Agora já bem antiguinha e em desuso, ela é muito válida se quisermos olhar na origem o problema e a séria contradição das redes sociais. “Navegar na rede” é uma expressão sem nenhum sentido, um contrassenso, e nem percebemos. Isso porque, veja, ou bem estamos navegando, nadando, nos movimentando em algo, ou bem fomos pegos, em nossa navegação ou nado distraído, e nos emaranhamos numa rede.

O sentido de conexão que eventualmente querem nos vender ou que nós mesmas(os) tentamos destinar ao uso que fazemos das redes sociais é enganoso. No mínimo, dúbio. Estamos mesmo usando as redes e nos conectamos com pessoas e conteúdos que escolhemos e nos fazem sentido ou estamos sendo usadas(os) por elas a seu bel prazer e intenções, capturadas(os) sem perceber?

“O dilema das redes”, o documentário da Netflix sobre as redes sociais, vira do avesso a questão e nos mostra cruamente este mundo (ou submundo) “social”. A narrativa de algumas das pessoas que trabalham ou trabalharam nos cargos mais centrais de produção e engenharia das redes sociais assusta. Ainda bem!

O aparato é realmente danoso, está afetando a vida de todos nós e criando uma geração de pessoas desconectadas de si e também desconectadas efetivamente dos outros. Vivendo uma vida de mentira, atrás de telas e filtros, os mais jovens são os mais atingidos por essa distorção do sentido de conexão e da própria vida. Depressão, suicídios e falta de habilidade social podem ser medidos e subiram de forma exponencial justamente a partir do surgimento das redes sociais.

A única conexão que pode existir neste contexto é entre fantoches, zumbis, ou seja lá que nos tornamos quando viramos presas das redes sociais. Ficamos ali, arrastando os dedos nas telinhas, certas(os) de que estamos escolhendo como nos divertir, do que gostamos, quem queremos seguir, mas neste momento o que de fato está acontecendo é justo a captura e manipulação das nossas escolhas e desejos, da nossa própria liberdade e da nossa vida. Isso porque há uma série de fatores cuidadosamente pensados, desde o nosso aparelho celular, até o funcionamento de curtidas e sugestões e anúncios e os perversos algoritmos, para capturar todo o nosso sistema de reações físicas e emocionais. Uma máquina de viciar.

 “Apenas duas indústrias chamam seus clientes de usuários: a de drogas e a de software.”

Está aí uma frase que resume o documentário. O restante é melhor assistir mesmo.

Iana Ferreira
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