O balcão erguia-se ali à sua frente, entre sua monolítica existência e o mundo frenético e desordenado da rua. Era bom que fosse assim. Nada mais haveria entre ele, o funcionário burocrático, e o que quer que teimasse em existir do outro lado do que a vaga sensação de reconhecimento, alguns gestos feitos por educação, um olhar rápido instantaneamente desviado e um retesamento de músculos do rosto que esboçava o máximo do que poderia ser reconhecido como um cumprimento. E o balcão reto, firme e sólido ali estava para o homem que mal se aproximava dele. Intocáveis se mantinham as grossas madeiras escuras da sua fortaleza.

Do outro lado, uma rua insuportavelmente movimentada, barulhenta, aberta em vários e confusos caminhos. Pessoas indo e vindo em seus trajetos incessantes e desgovernados – será que sabiam mesmo para onde iam?

E o balcão protegia o homem de ir até lá e de se perder sem rumo, ganhando quarteirões, dobrando esquinas, precipitando-se pela serra nos limites da cidade e alcançando o mar.

O mar que vira algumas vezes com olhos espantados de menino. Em sonhos, claro, em sonhos de criança, onde elefantes cinzas subiam e desciam leves e flutuantes na água cristalina.

Não, nunca vira o mar. Agarrando-se com firmeza à pesada madeira do seu balcão-fortaleza assegurava-se de que nunca vira o mar. Não, não vira o mar, nem nunca sentira o movimento das ondas, nem espuma brincante, nem abraço de água, nem dera cambalhota flutuante.

Nunca correra de onda folgazona, nem brincara de pega e esconde com essas amigas ondas, em seu balanço lento e divertido. Não, nunca tinha sido derrubado na quebrada da praia, engolido areia, brincado com conchas e visto caranguejo andar de lado. Nem amigos jamais tinha tido.

Nem sequer criança fora um dia. Nascera adulto, burocrático e taciturno. Sua mãe lhe dera à luz naquele cartório escuro. E imediatamente pusera-se de pé e chamara a primeira senha e começara a atender, sem muito bem entender carimbos, assinaturas e documentos, mas trabalhando previsivelmente atrás do balcão, a sua fortaleza. Sem nenhum elefante que lhe povoasse os sonhos. Porque, não, jamais sonhava. E o velho balcão erguido ali, onde se segurava secretamente àquela hora monótona e quente do dia, era a segurança de que jamais sonharia.

Sentia a madeira com discrição. Era preciso que ninguém percebesse que havia esse quase insignificante contato com o mundo de lá, onde havia gente. Sentiu uma parte rugosa da madeira, depois um veio natural, por fim um buraco talhado no móvel, no tampo pela parte de baixo.

Assegurou-se de que ninguém percebia seus gestos e continuou a escorregar o dedo pelos desenhos da madeira, a vida da madeira que se imprimira ali, em rugas, nervuras, buracos, falhas, lizura, dureza e a aspereza de camadas de verniz sem preparo de lixa. Os dedos ora apertavam a madeira, ora deslizavam como que num voo rasante, daqueles que faz as plantações se dobrarem até o chão.

Ia cada vez mais, como que embebedado e sôfrego, esfregando o dedo na madeira. Agora o gesto era definitivamente rude. Apertava as rugas, escorregava os dedos pelos veios pressionando-lhes as bordas, enfiava a palma da mão até sentir que se machucava. Percebeu uma pequena farpa e pensou num gigantesco espinho que se enfiava em suas entranhas. Mas nada o fazia parar.

Olhava para longe, por sobre o ombro de um jovem que falava com voz justa e pausada uma fala metodicamente preparada. Balançava a cabeça para fingir que lhe estava seguindo o pensamento, mas, na verdade, estava em outro lugar. O tato, os sentidos, a madeira dura e quente, as sensações, o gesto repetitivo.

Lembrou-se de como esfregava o tecido do vestido da mãe dobrado entre o polegar e o indicador. Um tecido muito fino, quente e macio. Tão fino que se desfazia nas lembranças e fazia as lembranças se desfazerem também. Teria aquilo de fato ocorrido? Devia delirar naquele momento numa memória criada pela insanidade dos sentimentos. Ou teria acontecido ali mesmo, depois de ter sido dado à luz no chão frio do cartório e antes de carimbar o primeiro óbito?

Naquele tempo os fatos eram macios. Havia maciez no mundo. Tudo era terno e doce como aquele tecido.

Mas não, é claro que não. Jamais nascera num mundo assim. Fora despejado desde sempre no ladrilho frio, do cartório vazio, por trás do balcão negro de madeira dura, porém quente, pois as madeiras são quentes…

Agora oscilava entre os dois mundos. Sentia o cheiro de leite, o peito da mãe, o tecido entre os dedos. E isso logo depois lhe parecia um pesadelo distante…

Enfim a rua o atraiu como um ímã, e ele não mais resistiu. Precipitou-se para fora do balcão afastando o jovem, uma criança e duas mulheres e tudo mais que estivesse pelo seu caminho.

O caminhão arrancou quase em frente à porta. Viu bater os botijões. Verdes, azuis, metálicos, rachados, sujos, manchados, faziam uma dança estranha na carroceria do caminhão. Chocavam-se uns com os outros num estrondo de guerra, num alarde imenso.

Um buraco, uma poça de lama, água lamacenta que se espalhava. Pessoas gritaram , xingaram, se desviaram do caminhão reluzente no sol a pino. O motorista nem se dava conta. Em cima, os dois rapazes fétidos riam-se de tudo. O homem ainda correu por alguns metros como se seguisse o caminhão.

Por fim, o caminhão chacoalhante que se afastava com seus bujões reluzentes virou numa esquina dois quarteirões adiante, e a rua ficou tranquila.

O reboliço acontecia agora no coração do homem, que batia intenso e disparado. Saía-lhe boca afora, quase lhe fazendo enfartar. O homem sentia saltar as veias no pescoço, sentia saltar todas as veias do corpo.

E ali ficou com o corpo parado latejante. Inerte na rua, olhava a esquina. Um corpo paralisado, mas turbulento e pulsante. Ardiam-lhe as têmporas, pulava o coração, pesavam-lhe os braços, tremiam-lhe as pernas de ódio e temor.

Foi então que passou por ele, pelo lado esquerdo, roçando a mão que pendia na parte de fora da calçada, uma lufada de vento quente. Desviando o olhar para ali, o homem taciturno percebeu que o que lhe tocara a mão fora o tecido suave do vestido de uma criança. Uma menina saltitante, que pulava as poças de lama e que vestia um vestido de flores de tecido macio, muito macio, e um homem com o coração endurecido, que agora lhe saltava no peito, eram as poucas pessoas que ocupavam a paisagem da rua naquele exato instante do dia. Um pouco mais longe uma família de ciganos com suas roupas coloridas e Dona Matilde, a doceira-cartomante, dividiam o espaço sob a sombra de um uma árvore, à espera do tempo que passava sem pressa.

A menina continuou a pular as poças, mas, de repente, virou-se e veio correndo na direção do homem. Ele se assustou com a possibilidade do iminente encontro com aquele ser saltitante e turbulento. Mas a menina passou por ele, raspando-lhe ainda mais forte as costas das mãos, num gesto que ele teve certeza que havia sido proposital, e desapareceu às suas costas correndo.

Desapareceu porque o homem não se voltou para olhá-la. Mas ouvia-lhe os passos ligeiros. Súbito, eles silenciaram. E o homem ficou apenas ali na rua parado, ainda sentindo o coração bater forte no peito.

De repente, ouviu uma voz doce perto de si. Lembrava-lhe parque de diversões, maçã doce e algodão doce. Apenas disse:

– Com licença.

Finalmente, o homem moveu o corpo. E viu de novo a menina. Viu seu vestido florido e quase sentiu a suavidade do tecido. Viu os cabelos macios presos em tranças mais ou menos desfeitas e quase pôde sentir o cheiro doce de seu perfume e sua textura macia.

A menina continuava pulando as poças, mas agora trazia consigo um grande elefante cinza, que vinha atrás dela um tanto resistente puxado pela tromba áspera e cheia de dobras.

(continua)

Iana Ferreira
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