Artigo para o Jornal d’Aqui, março de 2021

 

Trezentos mil mortes no país, pouquíssimas vacinas disponíveis, entrada no segundo ano de pandemia, incertezas, falta de perspectiva e muitos outros fatores mais, acabamos ficando monotemáticos, claro.

 
Não entabulamos uma conversa sequer sem que, duas frases depois, não estejamos falando de isolamento, máscaras, lockdown, medos, tristezas e, pior, governos, políticas de enfrentamento (ou desgoverno, desenfrentamento) etc. Não é? Isso sem falar das conversas que vão para o “não vou usar máscara”, “absurdo fechar tudo”, “queremos trabalhar”, “viva a cloroquina”. O tema está em todas as rodas, em rodas de todos os tipos.

 
Este artigo quis ser sobre outra coisa, mas também começou igual, afinal, o contexto, tudo que nos cerca há um ano…

 
Mas ainda é possível tentar outra direção.

 
Então, mudando de assunto, como está a família, como vão as relações familiares?

 
Ah, é verdade, na pandemia são muitos os desafios aí, seja pela convivência que ficou muito mais intensa, seja pela distância, saudades etc. Verdade…

 
Bom, mas e com os amigos, tudo bem?

 
Sim, sim, é mesmo, depois de um ano de pandemia, encontros virtuais já estão bem cansativos, para alguns, insuportável. Compreensível, acabamos nos distanciando…

 
E com o trabalho, as coisas vão bem?

 
É mesmo, home office é desafiador de fato. Às vezes, trabalha-se mais do que no esquema presencial, verdade. E claro que o desemprego e as incertezas são ainda piores. De tirar o sono, sem dúvida.

 
Pois é, mudanças radicais, crianças em casa, tarefas que se sobrepõem, projetos suspensos, cansaço, perdas de vários tipos – especialmente perdas de vidas, de pessoas queridas, histórias interrompidas. Vida que segue, queríamos concluir. No entanto, pelo menos até aqui e pelos próximos meses, vida que segue em pandemia.

 
E, por outro lado, é exatamente isso: a vida segue, embora siga em pandemia. As vidas que seguem seguem com os desafios de uma vida em pandemia. É como aquela plantinha que brota no meio do cimento, da calçada, do muro: encontra uma fresta e brota por lá. E acontece que ela não é monotemática. Longe disso. Faz raiz, broto, galho, depois folhas, às vezes flores. Como qualquer planta, só que irrompendo no meio do cimento.

 
Então, estamos assim: apesar de um mundo mais duro agora, vamos brotando e vivendo. E se não é possível mudar o assunto “pandemia” porque ele está aí por toda parte – e é fundamental mesmo que não o neguemos – podemos mudar ângulos e focos, e ao invés de olhar apenas para o paredão que nos bloqueou, enxergar as aberturas por onde a vida vai teimosamente seguindo.

 
Porque, sabe, este momento desafiador pode justamente nos levar ao encontro com tantas questões que vinham sendo adiadas e estavam, elas sim, ficando sem vida. Resolver pendências, enfrentar dificuldades das relações, valorizar os vínculos, aprender a suportar a solidão, encontrar formas novas e criativas de conexão e de trabalho, inventar, reinventar-se, criar o novo a partir do marasmo, lidar com aquela auto-exigência excessiva, falta de limites e de confiança que levam a um fazer, fazer compulsivo… Problemas antigos com caras novas e no centro de uma vida com menos distrações. Hora de cuidar. A vida segue sim, por mais difíceis que sejam os aprendizados e por mais estreitas que aparentemente tenham se tornado as passagens.

 
O que temos de novo para dizer sobre o tema que nos ocupa há um ano? Mudando o ângulo, como vai a vida? Sim a vida em pandemia, mas a vida…

 
 

Imagem: Dominika Rosiclay

Iana Ferreira
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