Estamos novamente polarizados. Está-se instalando no Brasil a tradição de, de tempos em tempos, diante de momentos políticos importantes, mergulharmos num clima exaltado, em especial virtualmente, em defesa de uma ou outra posição política.

Beligerantes, raivosos ou apenas dignamente indignados, no mês que vem iremos às urnas de novo a fim de depositar nossos votos, algumas vezes com a sensação de dar um tapa na cara daqueles que não concordaram conosco. Ali usaremos a nossa liberdade e, por fim, faremos valer o direito de escolher quem bem entendermos. Certo?

Em parte sim. Em parte não, não mesmo.

Vejamos.

Freud já apontou há tempos que a humanidade teve de suportar historicamente três grandes golpes em seu narcisismo. O primeiro veio com a afirmação de Copérnico de que a Terra não é o centro do universo. O segundo, com os estudos de Darwin, que demonstraram que o homem é muito mais aparentado dos animais do que gostaria. Por fim, a própria psicanálise, com a descoberta do inconsciente, desferiu o terceiro grande golpe, demonstrando que o eu não é mestre nem em sua própria casa, ou seja, que o homem não conhece tudo de si com aquilo que a sua consciência consegue abarcar.

Isso significa que grande parte do que nos move não é conhecido ou compreendido, que temos vaga ou nenhuma noção dos lugares de onde nascem nossos impulsos, pensamentos ou sentimentos, escolhas, vontades e desejos. Somos fruto também de certas condições, quando não de condicionamentos, socioculturais que não conhecemos ou não discriminamos bem.

Sendo assim, e considerando-se que o inconsciente é muito mais amplo do que aquilo a que temos acesso pela consciência, a conclusão óbvia é a de que não temos controle absoluto das nossas vidas, a nossa liberdade é relativa e nossas escolhas são mais ou menos condicionadas.

Mas sigamos, porque há esperanças.

Apesar disso, em condições não patológicas, temos chances de exercitar e, com isso, aprimorar e gradativamente aumentar o nosso poder de escolha, a nossa liberdade, a nossa consciência. Para tanto, é fundamental valermo-nos continuamente das nossas capacidades humanas relativas ao pensamento, autorreflexão, assim como lidarmos bem com nossas emoções, impulsos etc.

Faço aqui um parênteses porque me vem à lembrança o exato dia do segundo turno das eleições de 2014, Dilma versus Aécio, época em que, a meu ver, os ânimos começaram a se exaltar. Naquele dia, saindo de casa para votar, eu me vi presa no portão de casa depois de cair na bobagem de atender a um telefonema e responder para a pessoa que me ligara em quem eu estava indo votar. Do outro lado da linha uma voz exaltada e tomada de histeria  me invocava a mudar de opinião. A pessoa não parava de falar, tampouco me ouvia. Eu estava a cinco minutos da urna de votação e não mudei meu voto, obviamente. A minha negativa fez a amizade ficar abalada. O que vimos naqueles dias foi nascer em todos os cantos do país pessoas que eram Dilma desde sempre ou Aécio de todo o coração, ou vice-versa, como preferirem. Desde então, entramos numa histeria coletiva da qual não mais saímos.

As perguntas que surgem são: por que nos exaltamos diante de divergências assim? Por que somos reativos a uma opinião contrária à nossa já no primeiro instante em que entramos em contato com ela?

Especificamente no campo político, por que estamos agindo de forma passional? Seria preciso minimamente observar e nos perguntar: o que nos leva a aderir a posições polarizadas em que o meu lado é o totalmente certo e a personificação do bem, enquanto o outro lado é o erro e a personificação do mal? E isso se dirige, em grande parte dos casos, a pessoas ou grupos que nem sequer conhecemos profundamente e cujas intenções reais não podemos de fato aferir.

Com algumas exceções, em que tiranias, extremismos ou fundamentalismos nos ameaçam – e sabemos por fenômenos do século passado, como o nazismo ou as várias ditaduras, inclusive a que esteve em curso no Brasil, que essas possibilidades existem e podem se desenvolver bem próximas de nós –, nenhum ser humano ou instituição está constituído com tamanho poder de incorporar totalmente o bem ou o mal.

Certamente quando sérias perdas de liberdade se avizinham, se há qualquer tipo de desrespeito a pessoas ou grupos ou a não garantia de direitos humanos, nenhuma aceitação é possível. Aceitação não se aplica nesses casos, pois se trataria de uma distorção da ideia de tolerância e convívio democrático. Uma vez que direitos humanos ou o direito à vida estejam ameaçados é preciso se opor sim, com toda certeza, e denunciar.

Se não é este o caso, no entanto – e mesmo aí qualquer posicionamento precisa ser assumido dentro dos exatos princípios de não beligerância e respeito –, se não estivermos diante de situações extremas e nossas opiniões estiverem tendendo a extremos e inflexibilidade, podemos ter certeza de que alguma forma de engano está em curso. Os discursos parciais e polarizados simplificam questões que por natureza são muito complexas. Propostas e capacidades infalíveis de quem quer que seja são irrealidades, nas quais embarcamos movidos por reações emotivas e esperanças fantasiosas, que fatalmente nos frustrarão.

Conviver com diferenças e lidar com elas deveria ser reconhecido como nosso exercício diário de humanidade. É apenas no encontro com o outro, sempre diferente de mim, que reconheço a mim mesma. É apenas porque posso me encontrar com as diferenças externas que tenho a possibilidade de me reconhecer naquilo que também sou diferente, um ser particular e único. No âmbito comunitário ou coletivo, é pelo conhecimento das diferenças que podemos chegar ao que é comum. Tudo isso nos é dado como possibilidade porque, como seres humanos, somos capazes de lidar com o que é diverso sem ter que agir obedecendo a um padrão ou instinto único de espécie.

Lidar bem com a diferença é ter a possibilidade de lidar com a sombra pessoal. O diferente no outro não ativa campos rechaçados em mim, portanto, consigo suportar. Lidar com a sombra pessoal é anteparo imprescindível quando a sombra coletiva se ergue em manifestações irracionais de ódio e oposição pela oposição, esvaziada de debate. Lidar com a sombra, pessoal e coletivamente, é algo que precisa ser feito momento a momento, pois facilmente nos tornamos presas de opiniões enviesadas, movidas por pouca razão e por simpatias ou antipatias desenfreadas. Lidar com esses campos de sombra e inconsciência é imprescindível se não quisermos ser manipulados ou embarcar em comportamentos de manada.

Nossas grandes e importantes escolhas começam, portanto, no pequeno, no dia a dia, em nós mesmos e em nosso círculo mais restrito, ali onde a vida cotidiana, nossa vida de fato, acontece. A cada opinião exaltada que nos embota, a cada reatividade que polui nossa capacidade de discernimento, a cada arma mental ou verbal erguida seria preciso no mínimo ativar nossa atenção para nós mesmos e observar o que nos move. Ainda que nossa liberdade seja limitada e nossas escolhas em parte condicionadas, é a cada momento assim que passaremos a conhecer mais de nós mesmos e, portanto, a poder nos conduzir com mais consciência.

Esta é a nossa possibilidade de humanamente estarmos no mundo e melhor contribuirmos para ele. Que possamos seguir para escolhas mais conscientes nas semanas que estão por vir.

Artigo para o Jornal d’Aqui, Granja Viana, Cotia, SP

Iana Ferreira
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