Artigo para o Jornal d’Aqui, julho de 2020

Para quem começou direitinho a quarentena lá em meados de março, um, dois, três meses de isolamento já se foram e chegou-se a esta marca incrível dos cento e poucos dias em casa, com saídas escassas e apenas essenciais. Nada de festinhas ou encontros, compras em lojas, idas ao teatro ou ao cinema. Só mesmo supermercado e farmácia. Situação impensável tempos atrás. Inimaginável naquele março de expectativas tão enevoadas, de previsões às vezes catastróficas demais, às vezes esperançosas em demasia.

Um cento de dias se foram, medidos com imensa precisão pelas ausências, pelo que faltou. Talvez nunca tenhamos estado tão conscientes do tempo: quanto tempo não vemos os netos, quanto tempo não temos os filhos por perto, quanto tempo não nos encontramos com os amigos/as amigas. Quanto tempo sem isso, quanto tempo sem aquilo. Que presença a falta traz. Inverteram-se as lógicas, olhem só o grande poder da pandemia.

E como passa o tempo agora, cem dias depois? Alguma diferença para o início do recolhimento? As coisas melhoraram, num processo de amoldar-se ao isolamento, ou estão cada vez piores, demonstrando saturação crescente?

Escuto pessoas quase todos os dias em telinhas tecnológicas dispostas sobre a mesa, nesta versão online do consultório que se impôs desde aquela segunda quinzena de março. E tento fazer um cálculo estatístico rápido aqui, a partir do que tenho escutado. Posso dizer que, entre as pessoas com quem eu converso, incluindo agora familiares e amigos, 80% está melhor em relação à pandemia e à quarentena neste momento.

Não é um dado generalizável, claro. Estou falando de pessoas que em sua maioria – não totalidade, mas maioria – são de classe média/classe média alta, com acesso a cuidados médicos e psicológicos e algum nível segurança. Várias até precisam sair para trabalhar, senão diariamente, algumas vezes durante a semana. Algumas até trabalham no setor da saúde, mas não estão na linha de frente do combate à covid-19. Ou seja, uma amostragem um pouquinho variada, mas não o suficiente para resultados conclusivos.

Ainda assim, é possível entender o que pode fazer diferença, observando o que tem feito diferença para essas pessoas. Não consigo enxergar outra coisa que não ajustes bem realizados, acertos quanto às perspectivas e expectativas, acomodação num sentido positivo e adequações ao novo momento e ao novo estilo de vida que se impõe. Numa palavra, adaptação!

Seres vivos de um modo geral possuem esta incrível capacidade. É um fator central, inclusive, para a sobrevivência. Compreender os acontecimentos e fazer as mudanças necessárias é responder bem às situações que se apresentam. Este diálogo, que envolve ainda aceitação das condições que não podem ser mudadas, é essencial.

Se dispomos no corpo de um sistema imunológico que “lê” as condições do momento e toma as providências adequadas – e neste momento como ele é importante, além de todas as medidas preventivas que devemos manter! -, também possuímos nossa imunidade psíquica. Este sistema observa fatores intrusos que causam prejuízos e os combate. É o grande responsável pela implementação das adaptações também.

Quando ele se coloca ativo, é bem possível que observemos mudanças de temperatura e/ou disposição. Ou seja, algum nível de estresse, tristeza, preocupação, ansiedade podem surgir. Eles são naturais e, inclusive, ótimos sinais, indicações de que estamos nos dando conta da situação e buscando nossa forma de elaborá-la. Então, com o tempo, é possível que nosso psiquismo tenha dado conta de fazer as mudanças necessárias para restabelecer algum equilíbrio e fluidez da vida.

Não sabemos quantos dias mais teremos pela frente. Sejam quantos forem, se contornarmos nossas resistências e teimosias e pudermos contar com esta formidável capacidade adaptativa, os dias passarão e nós passaremos por tudo isso de forma mais positiva. É possível!

 

 

Iana Ferreira
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