O sonho mais antigo de que me lembro deve ser de quando eu tinha dois ou três anos. Estou no meu quarto e ouço barulhos no corredor. Parecem passinhos de crianças brincando. Saio para ver e enxergo apenas sapatinhos que se movimentam. Não vejo as crianças. Primeiro pesadelo, na verdade. Fantasmas!? Crianças-espíritos!? Espíritos de crianças!? Um susto imaginar alguém ao mesmo tempo tão perto e tão inacessível… E imediatamente pensei se me viam, se para eles ou elas eu não estaria perto e acessível! Muito medo e uma noite na cama da minha mãe depois disso. Ainda bem!

 

A lembrança mais antiga é deste mesmo corredor: num aparador de madeira antiga, minha mãe havia me colocado sentada e me esperava comer algo que ela preparara para mim. Acontecia todas as noites depois que ela chegava do trabalho e eu acordava dizendo que estava com fome. Ainda consigo sentir o gosto do pão integral, do mel e do afeto destes momentos, que supriam para mim a sua ausência durante o dia.

 

As primeiras tensões foram sempre ao visitar meu pai no jornal onde ele trabalhava. Minhas pernas ficavam rígidas e esticadas sobre a poltrona gigante onde ele me punha sentada esperando um intervalo para irmos à sorveteria. E eu tremia quando alguém exclamava: “Que menina bonitinha! Quem é?”. Não me lembro se ele respondia com orgulho, frieza, alegria ou se fazia piada. Mas o sorvete da doceria em frente era incrível. Eu nunca precisava pedir, era parte do programa da visita atravessar a rua e se deliciar com uma taça gigante, enquanto ele conversava com um sem fim de pessoas.

 

Os primeiros medos foram de subir em árvore. Medo de altura, medo primeiro e último, medo de sempre, eterno medo. Olho a imagem de quando eu tinha cinco anos e minha mãe havia me colocado em cima de uma árvore para fazer a foto. Posso me lembrar exatamente de como minhas pernas tremiam e os meus joelhos batiam. Mas estou sorrindo.

 

O choro mais doído foi ao quebrar a perna, aos nove. A primeira grande tristeza foi quando meu pai não veio me buscar, também por essa época. E ele realmente não viria mais, no fundo eu sabia.

 

Os risos mais espontâneos foram muitos, em geral depois daqueles minúsculos vexames que fazem explodir um surto de risadas quase sem sentido, algo que esperava motivo nenhum mesmo para sair.

 

A primeira admiração comigo mesma foi quando a professora do pré-primário chamou minha mãe para uma conversa, disse que eu estava dormindo e desestimulada nas aulas e aconselhou que eu fosse para o primeiro ano imediatamente. A eterna admiração pela minha mãe foi por ela não ter aceitado a proposta dizendo que não havia pressa e ter me dado grandes férias cheias de livros, quintal e passeios no parque por um semestre inteirinho. Depois procurou uma escola menos apressada, onde eu pudesse ter mais tempo de ser criança.

 

A primeira sensação de amor foi pela minha melhor amiga na quinta série, um calor no coração extasiante. A primeira grande decepção foi dessa época também, quando outra amiga pediu para fazer um trabalho de escola comigo, roubou várias das minhas ideias e fez uma apresentação incrível com um outro grupo de meninas. Não havia nenhum adulto para perceber o que acontecera e socorrer a todas nós, ensinando ética e correção. Tudo o que importava era a história e a geografia.

 

A primeira grande viagem foi de Brasília a Fortaleza de fusca, com a minha mãe e um amigo dela. Na volta, depois de tanta estrada deserta atravessando sertões e o cerrado, a roda do carro simplesmente tombou de lado já no estacionamento do nosso prédio – valente fusquinha, nos levou e nos trouxe de volta em segurança e só entregou os pontos depois que a missão estava cumprida. As praias e os dias ensolarados de Fortaleza, o calor de ter uma família, os jardins deslumbrantes da Aldeota, as dunas tão brancas que quase queimavam a vista despontando às vezes no meio da cidade serão sempre as lembranças mais iluminadas. E o gosto dos cajus, das seriguelas, da água de coco e das mangas colhidas no pé, as mais doces.

 

A sensação de mais poder foi ao ver a primeira TV colorida em casa. A primeira grande aventura escondida foi andar em volta do lago Paranoá de bicicleta procurando cristais – na verdade, quartzos, que, claro, a nossa fantasia via como cristais raríssimos – e me perder com os amigos. Quando encontramos o caminho de volta e cheguei em casa já de noite, minha mãe estava na porta, mas apenas exclamou: “Onde vocês estavam!”. Não, não era uma pergunta. Exclamação mesmo. Ela sempre teve muita fé de que nada de mal me aconteceria. Devia conversar com anjos.

 

O primeiro grande desejo foi de abrir espacato nas apresentações de balé, mas nas aulas eu praticamente só conseguia ficar olhando as nuvens pela janela. Coisas de criança fleumática, oras! Um dia levei uma bronca imensa por isso. Contei sobre as nuvens para minha mãe como uma revelação pessoal extraordinária. Naquele momento, tudo o que importou foi o dinheiro gasto nas aulas. Daí veio também o primeiro grande choque com o funcionamento do mundo.

 

O primeiro namorado foi aos sete anos, com pedido de namoro e tudo, alvoroço e risadinhas das meninas, e duas famílias incríveis que acompanharam amorosamente essa nossa primeira aventura no mundo dos afetos. Muito antes, a primeira experiência com o corpo dos meninos foi nos fundos do jardim de infância, num fim de tarde nublado em que os pais demoraram a chegar. Baixamos calcinhas e cuequinhas e olhamos com a maior curiosidade do universo para aquilo nos fazia usar banheiros diferentes na escola. Ah, e havia sim uma diferença! Que engraçadinha! Demos risadinhas nervosas e corremos de volta para o pátio suspeitando que, se soubessem, os adultos não teriam nos deixado fazer aquilo de modo algum. Depois fiquei meses querendo usar só shorts. Camisetas e blusinhas foram abolidas. O que usava no lugar? Nada, como os meninos. Para quê? Na parte de cima, nessa época, éramos totalmente iguais!

 

O primeiro insight foi por esses tempos também. Descobri no caminho de carro para a escola que eu estava muito, muito triste porque não havia conseguido amarrar o cadarço do tênis. Depois disso eu pensara várias coisas e já não sabia mais o que estava me chateando tanto. Então, descobri que eu podia voltar pelo caminho dos pensamentos e achar o ponto de tristeza e, às vezes, desfazê-lo. Foi incrível e comecei a percorrer meus pensamentos de trás pra frente e de frente pra trás muitas vezes. Esse pode ter sido também o primeiro vislumbre do meu trabalho futuro com a psicologia.

 

Desculpem se me estendo, mas essa torneirinha de lembranças é difícil de fechar. Acredito que esteja quase terminando…

 

A primeira maior vergonha do mundo e de todas, para sempre a maior, foi ter levado boneca no primeiro dia de uma nova escola, aos 12 anos, quando nos mudamos para o Rio de Janeiro. Aquilo foi ridículo. Meninas e meninos se cumprimentavam com selinhos, e eu enfiava com força uma boneca de pano no fundo da mochila, morta de medo de que a descobrissem. Já em casa nos abraçamos e choramos. Era hora de começarmos a nos despedir.

 

A primeira transa… Ah, aí já não estamos mais na infância!

 

Hoje, como todo mundo, tenho um corpo tecido pelas memórias. As de infância, em especial. E essas memórias me deslocam pela vida, provocam arrepios, tremores e fazem bater mais forte o coração. Elas me fazem rir e chorar, ter medo ou seguir em frente.

 

Às vezes, sinto que preciso colocar a criança sobre o aparador e lhe dar alimento para suprir suas carências. Às vezes, é ela quem me ajuda, me fazendo rir com toda a espontaneidade do mundo dos meus pequenos vexames, de uma piada, das imperfeições, de qualquer chiste insignificante.

 

Às vezes, eu preciso colocar-lhe limites ou ela me inundará com demandas, exigências e apelos. Mas às vezes é ela quem me ensina a não ter limites e admirar incrivelmente algo belo, entregar-me de corpo e alma a uma contemplação ou ao prazer.

 

Hoje vamos nos sentar no banco da varanda da casa que eu construí e ver juntas álbuns de fotografias antigos. Imagino que vou ter vontade de lhe contar sobre tantas coisas que venho aprendendo. Ela também pode me falar, tagarela, sobre como foi seu dia na escola. Reconhecerei, admirada, várias coisas parecidas que nos aconteceram.

 

Acho que servirei para nós duas o sorvete de creme que está na geladeira. Há coisa que lembre e agrade mais a infância do que esse doce gelado? Eu direi “não podemos comer muito”. Ela piscará para mim balançando a cabecinha, impaciente com minhas limitações, e se esbaldará naquela neve cremosa. E vai dizer: “Se você não quiser comer, melhor pra mim. Sobra mais. Você é quem sabe!”. Vou ouvir sua risada graciosa e sei que vamos acabar raspando todo o pote.

 

Que maravilha! Viva! “Por que não”, devo pensar, “se hoje é dia dela!?”.

 

12 de outubro de 2017, dia de comemorar a criança em nós.

 

 

Imagem: foto de Carlos Saura de sua filha, Ana.

 

 

Iana Ferreira
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