(Desta vez a crônica da Silmara Franco vem direto do blog dela, no presente e de presente – crônica da semana no Fio da Meada, com uma dedicatória especial, que muito nos honrou e encheu de alegria e outras boas emoções.)

 

A amiga comentou, quase en passant: no texto digitado aparecera a “sianinha” embaixo de uma palavra. O risquinho vermelho, sinalizando que a grafia estava incorreta. Mão na roda para escritores distraídos ou erráticos.

 

Parece uma sianinha, mesmo. Aquele fitilho ondulado usado nas costuras. Achei delicado, o apelido.

 

Minha mãe costurava. Cresci em meio a coisas enfeitadas com sianinhas de todas as cores. Algumas tão fininhas. Toalhas, roupas, lençóis, aventais. Além de alerta para imprecisões da língua, a sianinha ortográfica acabou cumprindo outro papel: ativadora de memórias.

 

Fui parar na sala da nossa velha casa, sentei-me no sofá de courvin marrom, o LP da novela Selva de Pedra (primeira versão) na vitrola. Minha avó lavando roupa no tanque, meu avô encerando a casa na enceradeira tão grande que sentávamos em cima dela e íamos junto, minha mãe ora na cozinha, ora em seus tricôs, crochês, costuras. Tão caprichosa, sempre.

 

Havia um bazar de aviamentos no quarteirão. Era a garagem de um sobradinho geminado, transformada em loja. Sempre íamos, minha irmã e eu, buscar alguma coisa que ela pedia. Até hoje gosto dessas lojas, quero comprar tudo e fazer tudo. Nunca compro nada e nunca faço nada. Sou só uma teoria descosturada.

 

Enquanto escrevo, várias sianinhas aparecem. O corretor não reconheceu a palavra courvin. É courvin mesmo, meu bem.

 

Corretor ortográfico é uma espécie de professor. Lembrei da Maria Olívia, minha professora no primeiro e segundo ano. Com delicadeza, ela sublinhava a lição – sem fazer sinhaninha – com caneta vermelha, ensinando que jiboia era com jota e não com gê. Anos depois, batizei uma gatinha com seu nome. Seria bonito dizer que foi em sua homenagem, mas não foi. Por gosto, mesmo. Maria Olívia, a gata, fora abandonada pela mãe, que dera cria no carro do vizinho. Um dia cheguei em casa e ela havia ido embora, levando todos os filhotes, menos ela. Era a mais fraquinha, sempre doente. Gostaria de reencontrar Maria Olívia, a professora. Maria Olívia gata também, se esse negócio de reencarnação também valer para os bichos.

 

Eu gostava de brincar com as linhas, agulhas, rendas, botões e sianinhas da minha mãe. Dona Angelina sempre deixava. Não havia nada que ela não nos deixasse brincar, aliás. Observava a arquitetura das minicurvas da sianinha, pareciam cabelo anelado de boneca. Ficava imaginando como é que faziam aquilo tão perfeitamente.

 

(O calçadão de Copacabana, repare, é uma sianinha gigante.)

 

A amiga que falei se chama Iana. Rima com quê? Siana. Que nem sei se existe, talvez sianinha seja palavra nascida no diminutivo. Igual carinho. Só sei que a vida não dá ponto sem nó.

 

Vou revisar este texto e ver se tem outras sianinhas para corrigir (ou não). Quem sabe eu me recorde de mais alguma coisa no meio do caminho. Quando escrevo, não uso apenas um editor de texto. Uso um editor de lembranças também.

 

Se as sianinhas enfeitam os panos, as memórias enfeitam toda a existência.

 

Para Iana Ferreira

Silmara Franco
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