Daqui uma hora sai o almoço. No cenário dominical da sala, tenho sessenta tranquilos minutos para responder alguns emails. Uma inquietude me invade, porém. Eu a conheço bem. Danada, ela tem fome de sacarose – na forma de chocolate, de preferência. Costuma exigir de mim atitudes imediatas. Desta vez, a reivindicação era um biscoito recheado. Em troca, ela me daria paz.

 

No entanto, em uma hora: almoço. Não posso traçar um doce assim, na frente dos pequenos. Atrapalhará a refeição deles. Mas a minha não. E agora? A tarde de outono acena com duas alternativas: por tudo a perder, desfilando com a iguaria e ser impelida a compartilhar o pacote, ou explicar a inquietude e as exceções que se abre na vida, deixando claro que eu posso, mas eles não. A primeira não é nada exemplar. E eles não cairão na conversa mole da segunda. Seria um tal de, a partir de agora, alegar ‘inquietudes’ para tudo.

 

Pediatras, pedagogos e nutricionistas, principalmente os que não têm filhos, ensinam que devemos ser firmes, consistentes e coerentes na educação alimentar da prole. O tempo todo, sem direito a recaídas. Nada de metamorfoses ambulantes. Não é simples. Dizem que, depois que têm filhos, os pais aprendem a comer direito, porque precisam dar o exemplo. A eles cabe a missão de garantir nutrição adequada, pelo menos, até o final da adolescência. Depois disso, a cria estará livre para administrar seus pratos como quiser. Trocando em miúdos: para fazer exatamente o que os pais faziam, antes de tê-los. Até que estes tenham filhos. É o ciclo da vida.

 

Mas há uma saída. Talvez não tão ética. Ironicamente infantil: dou início a um secreto plano de ação. Preciso chegar incógnita à cozinha e abrir o armário, sem despertar a curiosidade das crianças. Em seguida, localizar o alvo, apanhá-lo e abri-lo no mais absoluto silêncio. Nessa hora, todo cuidado é pouco; a embalagem plástica do biscoito recheado é ruidosa, traiçoeira. Pode delatar a infração em segundos. E o almoço sai em menos de uma hora.

 

Meu filho de seis anos adentra a cozinha, sem aviso prévio. Está procurando o gato. Sinto seu olhar inquiridor, quase sou pega com a boca na botija. Trato de disfarçar, “Este armário está uma bagunça, vou arrumar um pouco”. Ele pega o gato no colo, que lança um miado de protesto. Pudera, fôra interrompido em sua sesta. Protesto ignorado, e lá se vai a única testemunha do meu delito. Ainda bem que gato não fala. Recobro o ar. Agarro cinco biscoitos, escondo-os num guardanapo e volto para a sala. “Eu pre-ci-so, entende?”. Me vi numa sessão de terapia com outros dependentes do hidrato de carbono, confessando meus crimes gastronômicos. Placidamente, retomo a leitura dos emails, não sem antes alojar os biscoitos atrás dos livros, como um segredo. Minha filha, três anos, pergunta que horas vamos almoçar. “Já, já, querida!”. É meu pecado de hoje. Nada que cinco pais-nossos antes de dormir, um para cada biscoito, não resolvam.

 

Aproveito os breves instantes de ausência dos pequenos na sala e os devoro, um a um. O recheio de chocolate branco se dissolve na minha boca, junto com a minha consciência. Saciedade e vergonha viram uma massa agridoce, difícil de engolir. A paz prometida não veio. Mas terá valido a pena, o almoço é daqui a pouco. E eu quero que eles comam a abobrinha.

 

Imagem: Patricia Scarpin

Silmara Franco
Últimos posts por Silmara Franco (exibir todos)
× Como posso te ajudar?