A literatura confessional, em especial as memórias ou relatos autobiográficos que retratam a infância, possuem forte conteúdo emocional. Este, de forma quase inevitável, reverbera no leitor, suscitando imagens e cenas vividas assemelhadas, com suas cargas emocionais próprias.

Veja se não é o que experimentamos com este trecho do conto “Nuvens”, de Graciliano Ramos!

Esperamos que apreciem!

E, se desejarem, escrevam para gente contando que lembranças e sentimentos foram mobilizados. Que tal? Vamos apreciar muito receber o relato de vocês. Enviem para: contato@entretexto.com

 

“A primeira coisa que guardei na memória foi um vaso de louça vidrada, cheio de pitombas, escondido atrás de uma porta. Ignoro onde o vi, e quando o vi, e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho.

 

Talvez nem me recorde bem do vaso: é possível que a imagem, brilhante e esguia, permaneça por eu a ter comunicado a pessoas que a confirmaram. Assim, não conservo a lembrança de uma alfaia esquisita, mas a reprodução dela, corroborada por indivíduos que lhe fixaram o conteúdo e a forma. De qualquer modo a aparição deve ter sido real. Inculcaram-me nesse tempo a noção de pitombas — e as pitombas me serviram para designar todos os objetos esféricos. Depois me explicaram que a generalização era um erro, e isto me perturbou.

 

Houve uma segunda aberta entre as nuvens espessas que me cobriam: percebi muitas caras, palavras insensatas. Que idade teria eu? Pelas contas de minha mãe, andava em dois ou três anos. A recordação de uma hora ou de alguns minutos longínquos não me faz supor que a minha cabeça fosse boa. Não. Era, tanto quanto posso imaginar, bastante ordinária. Creio que se tornou uma péssima cabeça. Mas daquela hora antiga, daqueles minutos, lembro-me perfeitamente.

 

Achava-me numa vasta sala, de paredes sujas. Com certeza não era vasta, como presumi: visitei outras semelhantes, bem mesquinhas. Contudo pareceu-me enorme. Defronte alargava-se um pátio, enorme também, e no fim do pátio cresciam árvores enormes, carregadas de pitombas. Alguém mudou as pitombas em laranjas. Não gostei da correção: laranjas, provavelmente já vistas, nada significavam.

 

A sala estava cheia de gente. Um velho de barbas longas dominava uma negra mesa, e diversos meninos, em bancos sem encostos, seguravam folhas de papel e esgoelavam-se:

 

— Um b com um a — b, a: ba; um b com um e — b, e: be.

 

Assim por diante, até u. Em escolas primárias da roça ouvi cantarem a soletração de várias maneiras. Nenhuma como aquela, e a toada única, as letras e as pitombas convencem-me de que a sala, as árvores, transformadas em
laranjeiras, os bancos, a mesa, o professor e os alunos existiram. Tudo é bem nítido, muito mais nítido que o vaso. Em pé, junto ao barbado, uma grande moça, que para o futuro adquiriu os traços de minha irmã natural, tinha nas mãos um folheto e gemia:

 

— A, B, C, D, E.

 

De repente me senti longe, num fundo de casa, mas ignoro de que jeito me levaram para lá, quem me levou. Dois ou três vultos desceram ao quintal, de terra vermelha molhada, alguém escorregou, abriu no chão um risco profundo. Mandaram-me descer também. Resisti: o degrau que me separava do terreiro era alto demais para as minhas pernas. Transportaram-me — e adormeci, não cheguei a pisar no barro vermelho. Acordei numa espécie de cozinha, sob um teto baixo, de palha, entre homens que vestiam camisas brancas. Um deles perguntou como se havia de assar o bacalhau e outro respondeu:

 

— Faz-se um grajau de madeira.

 

Grajau? Que seria grajau? Tornei a mergulhar no sono, um sono extenso.

 

Disseram-me depois que a escola nos servira de pouso numa viagem.”

 

Graciliano Ramos, “Nuvens”. In: Infância. São Paulo: Record, 2003 (publicação original: José Olympio Editores, 1945)

 

Imagem: foto de Jeff Wasserman

 
 

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