Era para mandar pelo caderno duas figuras que representassem as profissões dos pais. A professora vivia pedindo coisas assim para as atividades em sala de aula. A princípio, ela achou interessante. Porém, lembrou que na sua época crianças de três anos não estudavam isso. Nem à escola iam, para dizer a verdade. Passavam o dia brincando em casa, construindo cidades imaginárias para seus carrinhos, fazendo comidinha para as bonecas, caçando tesouros no jardim. Se hoje, nessa idade, as crianças precisam encaixar na agenda estudos sobre profissões, alguma coisa vai ficar de fora. Porque o dia continua com as mesmas vinte e quatro horas.

Quando ela tinha três anos, eram vagas as suas noções sobre profissão, trabalho. Sabia que seu pai saía cedo de casa e só voltava à noite, às vezes dias depois. Ele sempre chegava com um brinquedo novo para ela e o irmãozinho. Sabia também que sua mãe costurava roupas para a vizinhança. Em troca, as vizinhas davam para sua mãe frangos, ovos, bananas, um quilo disso, um quilo daquilo. Então, trabalhar, que era aquilo que eles faziam todo santo dia para viver, deveria ser uma coisa muito boa. Uma vez, sua mãe ganhou um porco, mas recusou. Explicou que não havia espaço em casa. Além do mais, o porco ia fazer a maior bagunça no quintal. Dois dias depois a vizinha voltou com três pacotes grandes e pesados, avisando para guardar tudo na geladeira. Era o porco.

Encontrou algumas revistas velhas na estante da sala e recortou duas figuras. No fim do dia, leu o recado da professora:

As figuras devem estar relacionadas com o trabalho da mamãe e do papai. Favor substituir e enviar até amanhã. Grata.

Deitou o caderno no colo e perdeu o olhar no horizonte do pequeno apartamento. Que, de repente, lhe pareceu imenso. Olhou as figuras presas na página pelo clipe azul. Então aquelas não serviam? Tanto trabalho para achá-las. Desanimada, pegou novamente as revistas. Folheou uma, sem vontade. De repente, ficou séria. Não ia mandar outras, coisa nenhuma. Guardou a revista, alcançou a caneta e respondeu no caderno:

Para dar conta de tudo aqui em casa, eu costumo virar a Mulher Elástica. Já meu marido é como o Super Homem, vive ajudando meio mundo. Seguem as figuras de novo. Mas se você preferir, posso mandar uma de dentista e outra de advogado. Abraços.

Ajeitou tudo no caderno e terminou de arrumar a mochila do filho. Era tarde, e ela ainda não tinha colocado comida para o peixe.

Silmara Franco
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