Ou viva o Dia das Bruxas!

 

Na história de Vasalisa (nossa roda de conversas mensal está tratando deste conto), como em muitos outras histórias tradicionais, a mãe boa morre e o pai, o elemento masculino, é fraco e ingênuo e não se apercebe dos riscos que sua filha corre na convivência com a nova esposa e as filhas dela.

 

Estas últimas representam aspectos perversos da psique pouco desenvolvida, aspectos da sombra. A sombra e o trabalho com ela são de grande importância para o desenvolvimento pessoal. Quando qualquer conteúdo seu irrompe, seja ele positivo – talentos e forças que o ego não pode reconhecer – ou negativo, e nos deparamos com seus aspectos, fontes e sua própria existência em nós, podemos nos tornar mais fortes e inteiros.

 

No conto, a madrasta e suas filhas – a sombra, portanto – são aquilo que coloca Vasalisa em movimento: “Vá encontrar Baba Yaga e consiga dela fogo para acender a nossa lareira!”.

 

Neste contexto, a sombra é de fundamental importância para o processo de desenvolvimento psíquico. Sem o confronto com ela, não há narrativa, não há história, não há progresso. Sem este confronto, Vasalisa não sairia do lugar – nem da casa do pai nem da posição de menina boazinha, que a todos atende. É o confronto com a sombra, portanto, que promove o encontro com a grande bruxa Baba Yaga, o que será, então, a força impulsionadora definitiva para o processo de individuação.

 

Yaga, a bruxa, como todos os arquétipos, carrega características polares: ela é o poder da aniquilação e também a força da vida, é ameaçadora e justa. O “mal” que ela representa – aquele mesmo mal que foi expulso na Idade Média quando a Igreja baniu todas as bruxas, parteiras, benzedeiras, conselheiras e sábias e as enviou para fora do que passou a ser identificado como um sistema que representava o “bem” –, este mal precisa ser buscado pela menina boazinha. Sua personalidade “boa”, porém, fraca – também um aspecto sombrio – precisa se fortalecer.

 

E Baba Yaga não hesitará em lhe dar tarefas. Será grandiosa e também justa nisso, ainda que muito mal humorada na avaliação de que tarefas foram cumpridas.

 

Assim, a mãe terrível que Baba Yaga representa obriga a saída da zona de conforto, introduz a individualidade consciente nas forças da sombra, coage a que se deixe a condição paradisíaca determinada pela inocência e ingenuidade. Este é o ponto crucial da história! Se ficarmos imersos no prazer, aconchego e proteção dos braços da mãe boa demais, nós nos tornaremos inertes, amorfos e flácidos e por fim definharemos e perderemos a vida.

 

No entanto, há aqui um outro risco: se não cumprirmos bem as tarefas, seremos devorados por Baba Yaga, ou seja, seremos eternos prisioneiros da sombra, do mal. Nós nos tornaremos reféns permanentes do seu mundo, do seu ser. É quando, na vida, passamos a nos identificar como eternas vítimas. A posição de vítima é a que talvez mais cause sofrimento. É também o mais comum de acontecer. A vítima nada pode fazer. Não lhe são dadas escolhas. Está submetida, subjugada – pelos outros, pelas histórias, pelas circunstâncias etc.

Por sorte, as grades dessa condição são ilusórias. Ainda há Yaga acenando com suas tarefas. Sempre haverá! Esse ponto é de fundamental importância. Se, depois de sermos expulsos de casa e obrigados a buscar o fogo na casa de Baba Yaga, conseguirmos suportar a convivência com a bruxa, se nos hospedarmos com ela e tolerarmos seus aspectos temíveis, se a olharmos não com medo ou falso respeito, mas com humildade e nos colocarmos a cumprir suas tarefas, desenvolveremos as características necessárias para caminhar nas sombras e através delas: discriminação e clareza. Então, ampliaremos a consciência da nossa trajetória e nos apropriaremos de algo da própria bruxa Yaga, algo do seu poder e sabedoria.

 

O grande efeito disso é que paramos, então, de imputar fora o mal que não reconhecíamos dentro de nós, paramos de considerar que as pessoas são más conosco, os homens (ou as mulheres) são maus (más), a sociedade é má, a economia, o governo etc. são maus. Sem aqui negar essas realidades e a necessidade de lidarmos com as manifestações de perversidade, injustiça, discriminação, preconceito e todas as formas de corrupção que aparecem em diferentes contextos, é preciso reconhecer que só conseguiremos fazer isso efetivamente se não estivermos identificados com o lado exclusivamente “bom”, já que ele não existe, mas convocarmos nossas próprias bruxas para cumprir as tarefas de poder.

 

Valendo-nos da sabedoria de outro conto, é preciso convidar a fada má para o nosso batismo. Caso contrário, jamais poderemos fiar, produzir o fio do nosso destino adequadamente. Espetaremos o dedo na roca e cairemos belas(os), mas adormecidas(os), vítimas do encantamento imposto pelo que foi proscrito, pelo que fica de fora.*

 

Hoje, 31 de outubro, é dia de adentrarmos a floresta, nos aproximarmos da isbá da Yaga. É dia de nos hospedarmos em sua louca casa que gira sobre pés de galinha. É dia de aceitarmos suas tarefas. Dia de encarar o desconforto, o desagrado, a penumbra da bruxa. Hoje é dia de festejar o que vive nas sombras, dia de festejar os mortos, os sacis, as bruxas. Hoje é dia de festejar o proscrito! Amanhã poderemos então celebrar o bom e o ruim, o agradável e o desagradável.

 

Hoje é dia de nos prepararmos para festejarmo-nos mais inteiros e inteiras!

 

Imagem principal do post: S. Razvodovskij

Casa de Baba Yaga: aquarela de Atwhim Etsy

* Marcos Fleury, grata pela guiança (esta palavra existe, gente!); olha o tema se reapresentando!!!

 

Iana Ferreira
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