varalIsso se sabe há gerações e gerações, num conhecimento que é passado de uma mulher a outra sem palavras, apenas nos gestos e nas ações.

O fato é que a melhor maneira de lavar a alma é à beira do rio. Lava-se a alma em água corrente, e o certo é colocá-la para quarar no sol mais quente do dia.

Usa-se o sabão certo, alvo como a cor que se quer obter de novo na alma que porventura tenha se turvado. Deve-se escolher também um dia claro, pois à sombra não se lava muito bem uma alma. É preciso ainda fazer sempre bastante espuma, sendo muito importante também não deixar que esta seque, para não amarelar o tecido – tecido da alma, bem entendido.

Pode-se realizar esse procedimento várias vezes, até que se sinta feliz. Ensaboa-se, coloca-se ao sol, volta-se a ensaboar, umedecendo a alma e agregando mais do alvo sabão ao tecido e assim por diante, quase infinitamente.

Depois é hora de voltar à beira do rio e bater a alma na pedra com entusiasmo. A batedura é parte que, em absoluto, não pode faltar. Com ela amolecem e se despregam as sujeiras teimosas, as quais depois, mergulhadas na água do rio, poderão seguir caminho. A batedura é, pois, essencial, é preciso que se repita. Faz a alma leve e macia e completa o processo que precede o enxague, a lavagem final.

Não se deve deixar rachar a alma pelo desmazelo de manter a sujeira agregada a ela. Com o tempo, a crosta que se forma se enrijece e se quebra, esgarçando e levando junto o tecido.

É certo que a sujeira não é o tecido – é o que nos salva sempre a alma. Como também não o são nem o sabão, nem a tinta, nem o sol, nem a água. Nem o próprio fio. Isso bem sabiam todas as antigas mulheres e também algumas ainda hoje em dia. Da alma não se tem nada além do que a tessitura. Pode-se esgarçar e cortar o tecido, mas o tecer que compôs a alma não se corta jamais.

Muito bem, mas há que se querer um tecido bonito, bordado de flores ou bem simples e liso, mas limpo. Quarada, batida e depois bem enxaguada há de se ter a alma assim.

Põe-se, então, a alma no varal para secar. É preciso saber que de tempos em tempos uma vontade irresistível levará quem está lavando a alma até lá e porá a pessoa como que hipnotizada a olhar o vento movimentar a alma na corda esticada no quintal. Ao fundo, se verá o lugar da lavagem: a pedra redonda do rio, o rio, os pontos cintilantes da água do rio e, mais ao fundo, os verdes claros e escuros da mata que emoldura o rio.

A alma ventará no varal até o fim do dia, quando deverá ser recolhida.

Dona Maria foi retirar aquela única peça de roupa do varal ao cair da tarde. Suas mãos estavam rachadas do trabalho de toda uma vida. Havia sulcos profundos no rosto também. A pele do braço parecia uma brilhante porcelana craquelada. O calcanhar doía-lhe um pouco com as fendas abertas pela secura. Mas Dona Maria não reclamava nem era triste. Ao contrário. Bem ao contrário. Sua alma era e estava cada vez mais leve e macia.

Naquela noite, vestiu a roupa limpa e dormiu. E sua alma ventou tão forte que se desprendeu e voou para bem longe dos varais. Dessa vez não voltaria. Não era preciso mais.

Iana Ferreira
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