Era um daqueles dias em que as nuvens não decidiam se chovia ou não chovia, mas para não abrir mão da dúvida e não perder o lugar, elas ocupavam todo céu em tons branco-acinzentados. Incrível como uma neblina frágil toma essa liberdade de nos enganar, ocultando nossa estrela mais poderosa, impedindo nossa visão do azul do Universo ao redor… Os devaneios sobre brumas me fizeram esquecer por um instante que eu estava naquela sala de espera.

Logo um apito insistente e agudo, acompanhado pela imagem de números vermelhos que piscavam em uma tela que estava bem a minha frente, trouxeram-me de volta à cadeira dura em que eu estava sentada. Os números na tela estavam chamando a mim!

Peguei minhas coisas apressadamente, me dirigi à sala do médico. O consultório era de um branco tão neutro e frio quanto as nuvens e o clima lá fora. Depois de uma breve entrevista, e demoradamente olhar meus exames, o médico anunciou seu veredito:

“Seu coração está acumulando água. Vamos ter que fazer uma cirurgia. Fique tranquila, vamos conversar um pouco sobre o procedimento e o tratamento…”

Água no coração? Nunca tinha ouvido falar nisso. De onde veio? Por que isso aconteceu? Como pode um coração juntar água? O doutor me deu suas respostas médicas para essas perguntas, mas acho que elas não foram suficientes para minhas dúvidas angustiadas. Até que ele disse:

“A cirurgia terá duas partes. Na primeira, vamos drenar a água que já está lá, e em seguida vamos abrir uma janela no seu coração, para impedir que a água se acumule novamente.”

Uma janela no coração. Uma janela será aberta em meu coração. De repente aquilo soou tão poético, que misteriosamente foi capaz de me acalmar. Mais tarde, quando eu já estava na sala de cirurgia, essa fala não saía de meus pensamentos, e ela foi a última coisa na qual pensei antes de fechar os olhos.

Acordei como se tivesse passado apenas um átimo. Estava feito: a água foi retirada, o coração foi desafogado, a janela foi instalada. “A cirurgia foi um sucesso”, pronunciou o médico, sem esconder uma pontinha de orgulho. Tecnicamente, estava tudo bem.

Os dias se passaram e não pude deixar de notar uma mudança curiosa, no mínimo. Pois as águas, que antes inundavam o tórax, pareciam ter encontrado um outro caminho, e escorriam escancaradamente pelos olhos. E eu, que nunca fora de chorar, de repente sentia as águas molharem meu rosto pela simples visão de um pôr-do-sol, ou de uma mãe amamentando, ou de assistir reencontros de seres amados no aeroporto. Enfim, tudo virou pretexto para lágrimas escaparem, em público ou no silêncio do quarto.

No começo achei aquela chuva toda um tanto desagradável. Cheguei a perguntar para o doutor se as águas salgadas dos olhos eram um vazamento da janela do coração. Ele me olhou com estranhamento e disse, embaraçado, que nunca ouviu falar sobre tal fenômeno. Receitou um remedinho para confusão mental.

Percebi que ele era um ótimo cardiologista, mas que não entendia nada sobre coração. Com o tempo, eu mesma compreendi. Com a janela fechada, as águas não tinham para onde ir, e ficavam lá, afogando meu peito com angústias que eu represava, e belezas que eu não era capaz de entender. Abriu-se a janela. Uma enxurrada de emoções que agora podiam ser sentidas passaram, como um portal que se abre para o novo.

O porquê de ter sido assim, não sei. A medicina não explica. Mas a poesia entende. Vai ver as emoções mais coloridas são como o sol, ou o azul denso do Universo. Bastam nuvens frágeis acumularem-se, para acharmos que não existem mais. Então, abre-se uma janela, sopra um vento, as nuvens frias se vão, e o firmamento brilha outra vez.


in memorian

in memorian

Sobre Alessandra Martins (por ela mesma):

Com seis anos traçava suas primeiras poesias, com dez derramava dramas pré-adolescentes em seu diário e desde os quinze tomou gosto por escrever crônicas e contos. Tem uma caneta pena tatuada nas costas, porque acredita que a escrita é a coisa mais certa e eterna em sua existência.

 

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