Era um quarto pequeno. Na verdade, era um quarto muito pequeno para três. Ela demorou a chegar, talvez nem contassem mais com isso. O relacionamento já não andava lá essas coisas, muita discussão, irritação e a privação de sempre, de tudo, que não ajudava nada. Tudo sempre contado, no limite, isso dá nos nervos de qualquer um. Eles eram muito jovens, começaram tudo muito cedo, nem sabem bem como. Uma atração irresistível, o tesão fervilhante da adolescência e depois a culpa. Será que teriam ficado juntos se não tivessem ido tão longe, atravessado as fronteiras da moral da época? Não, eles não sabem e nem nunca mais saberão. Talvez seja por isso, por não terem certeza, que as coisas chegaram a esse ponto. Ele tinha vontade de experimentar mais, de voar, nunca foi passarinho engaiolado. Saiu de casa cedo para ganhar a vida, sempre lutou muito e fez por merecer. Sim, a casa era pequena e o quarto apertado para três, mas ele sempre deu um jeito e nunca desistiu. Ela era criança livre, solta, de pé no chão e nadar no rio. Tinha cabelos de milho, é o que dizem. Foi aprisionada pela mãe e pela sociedade, que não perdoa deslizes. Se estava apaixonada ninguém sabe e nem vai saber, que isso é só com ela. Ela que não suportava mais o aprisionamento e o aumento das responsabilidades em casa enquanto ele saía – para trabalhar e sustentar tudo isso, sim, isso é coisa que não se nega, mas também para aproveitar as novidades que não teve tempo de experimentar antes do casamento. Ela era linda de morrer, mãe dedicada, mas ainda assim ele traía. E ela já não aguentava mais. Mas como é que isso foi acontecer, mais uma criança? A casa é pequena, só tem um quarto, já tem as duas camas das meninas. Vai ter que dar jeito. E o jeito foi colocar o berço encaixado no meio das duas camas, tampando o criado mudo do meio, emburricando aquele quarto em que já não cabia mais nada, tinha que sair da cama pelo pé. Mas o que foi desconforto para uns foi justamente o conforto daquela criança que nasceu, dizem, fruto de reconciliação. E isso lá é possível? Claro que é, a criança está lá, no berço, no meio das duas, emburricando o quarto. E quando chegava a noite, com suas criaturas escondidas, suas sombras projetadas e seus sons de coisas e lugares que a gente não consegue ver, a criança estendia a mão. E por estar tão perto ela alcançava a mão daquela irmã. Tinha que ser aquela, não servia a outra. Acho que era porque a outra dormia mais profundo, era mais desligada. Essa não, já tinha idade para entender certas coisas, talvez ouvisse alguma conversa esquisita que vinha do outro quarto, alguma reclamação. Nem sei se dormia, porque toda vez que precisava estava sempre ali. Com a mão estendida para me confortar.

 

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Auto-apresentação: “Cobé de Leiria (pseudônimo adotado por Angélica no Lab10) nasceu na capital de São Paulo, Brasil, em 1972. Amante dos livros e da escrita desde criança, pôde dedicar-se à atividade somente há poucos anos. Sua formação em administração e gestão de empresas e seus estudos sobre a sustentabilidade e regeneração do planeta são base para a produção atual, buscando proporcionar ao leitor sua visão simples, pragmática e por vezes poética sobre diversos questionamentos mundiais e pessoais”.

 

Endossamos, destacando a visão poética com que Angélica nos presenteia em cada texto seu e acrescentando ao “simples” aquela indizível beleza da sensibilidade que fala direto ao coração, sem excessos, nada deixando sobrar ou faltar. Sempre prazeroso de se ler!

 

Em Óbidos, região de Leiria, Portugal (“daí o pseudônimo”)

 

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A mão estendida foi o texto de Angélica para a segunda semana do Lab10 2018, seguindo a proposta: “a primeira experiência de que tenho lembrança”. Esta segunda edição do Lab10 – oficina inteiramente online da Entretexto, com dez participantes que não se conheciam escrevendo e compartilhando seus textos por dez semanas consecutivas, a partir de dez diferentes temas – trouxe o desafio de propor uma “escrita de si”, com referenciais autobiográficos e um mergulho nas memórias pessoais e familiares.

 

Entretexto
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